Objetos brincantes e a literatura para brincar

16/08/2022

Por Patricia Auerbach,
autora da coleção
Objetos Brincantes

A cena é conhecida. Noite de Natal, casa cheia, famílias reunidas e crianças correndo eufóricas pelo apartamento. Será que o Papai Noel vai trazer aquele boneco do personagem favorito? O caminhão que anda sozinho e toca sirene?

Meus filhos tinham 2 e 4 anos e saboreavam a noite com amigos e primos da mesma idade. Antes que os mais novos começassem a bocejar, um dos adultos deu início ao suspense:

- Eu acho que ouvi um sino!

Tensão no ar. As crianças interrompem a brincadeira.  Alguém embarca no faz de conta natalino:

- Eu também, veio lá dos quartos!

Ilustração de A garrafa, livro de Patricia Auerbach

Ilustração do livro A garrafa, de Patricia Auerbach, da coleção Objetos Brincantes

Enquanto as crianças disparavam pelo corredor em busca do bom velhinho, uma equipe de pais e avós tomava a sala trazendo dezenas de caixas de embrulhos coloridos que estavam escondidos na cozinha. Quando todos os pacotes já estavam sob a árvore, seguiu-se o ritual.

- Criançada, ele está aqui! Venham depressa!!

Eles correram o mais rápido que podiam, mesmo assim não viram o senhor de barba branca e roupa vermelha que tanto queriam encontrar. Mas os presentes embaixo da árvore não deixavam dúvidas de que a estrela da noite havia passado por ali.

Em poucos minutos, o chão da sala estava forrado de papéis rasgados e laços de cetim colorido. Era brinquedo pra todo lado. O boneco, além de gigante, gargalhava. O caminhão fazia manobras apitando loucamente!

Ilustração de O lenço, livro infantil de Patricia Auerbach, pela Brinque-Book

Ilustração do livro O lenço, de Patricia Auerbach

Lembro de olhar em volta e sentir um desconforto com aquela cena. Os excessos cometidos por avós de primeira viagem.

O formato auto-brincante daqueles presentes que deixavam pouco espaço para a imaginação. Qual era o problema com bonecas de pano e crianças imitando vozes pra fazer de conta? Será que o lugar das crianças era mesmo o de espectadores de um caminhão que faz tudo sozinho?

Me distraí com a troca de presentes entre os adultos até que fui surpreendida por uma mãozinha gorducha me empurrando pro lado. Ele queria abrir espaço para a passagem de uma fila animada que corria pela sala gritando piuíííí, piuíííí.  Os maquinistas circulavam entre os adultos segurando uma longa fita de cetim que chegara à cena como enfeite na caixa do enorme caminhão. Eles eram um trem, e o que os transformava em comboio era uma fita. O som não precisava de pilha, a brincadeira não tinha manual de instruções. A fita tinha despertado nas crianças a vontade de brincar juntos, de inventar sem rumo. Eu lembro de olhar pra eles com orgulho e abrir um sorriso de alívio, como se a história daquela noite tivesse voltado para o lugar e a magia da infância estivesse de volta.

Pouco tempo depois, em um dia de chuva, tirei do chão algumas folhas de jornal para construir barquinhos, chapéus e espadas, na esperança de que distraíssem dois meninos agitados que corriam pela casa da avó pondo em risco a integridade de dezenas de pratinhos, vasinhos e porta-retratos que estavam na família havia décadas.

A brincadeira deu tão certo que eu decidi registrar algumas cenas do nosso faz de conta pra que eles nunca esquecessem aquela aventura. Foi assim que nasceu meu primeiro livro, O jornal, uma narrativa visual que constrói com imagens as aventuras imaginárias de um menino brincando com dobraduras de papel.

Capa do livro O jornal, de Patricia Auerbach

Foi ali que eu entendi que quando um adulto veste um chapéu de jornal ele FINGE que é pirata. As crianças não. No minuto em que elas tocam o chapéu, elas já SÃO os piratas. E é aí que mora a beleza e o poder da imaginação infantil. Ao viver como astronautas, surfistas, rainhas ou bombeiros, as crianças se transportam de corpo inteiro para outros mundos. Ao fazer isso, exercitam empatia e criatividade. E correm riscos, porque na imaginação não há garantias de sucesso.

Capa do livro O lenço, da coleção Objetos Brincantes

Depois de O jornal vieram O lenço e A garrafa, que também registram com imagens a experiência de crianças aventureiras e criativas dando vida a objetos simples do cotidiano. Para mim, a ideia de criar livros-imagem sempre foi permitir que cada leitor pudesse criar sua própria versão para a história. Eu sempre achei lindo o leitor reviver o meu faz de conta, mas no caso dessas obras minha vontade era dividir com mais gente a alegria de inventar personagens e situações a partir de objetos tão comuns. Educadores costumam chamar esses objetos de brinquedos não estruturados, porque eles permitem a interação livre e imaginativa sem que a brincadeira ou a percepção do brinquedo sigam um formato predeterminado. Para mim, esses sempre foram os Objetos Brincantes, aqueles que disparam em mim a vontade de criar e fazer de conta.

Capa do livro infantil A garrafa, da coleção Objetos Brincantes, de Patricia Auerbach

Há muito tempo eu me refiro aos três livros (O jornal, A garrafa e O lenço) como a coleção dos objetos brincantes. Eles foram saindo de forma independente ao longo dos anos, e com o tempo fui me dando conta de que eles eram naturalmente um grupo, um time, uma coleção. Por isso a partir de 2022 eles passam a ser oficialmente a Coleção Objetos Brincantes. O conteúdo não foi alterado, mas as três obras estão sendo reeditadas com logotipo da coleção na capa e acabamento padronizado. Meu desejo é que a coleção chame ainda mais a atenção dos leitores para o fato de que existem muitos objetos brincantes à nossa volta. Quero que essas obras sejam faísca para versões inusitadas a partir das minhas ilustrações. Quero que os leitores corram riscos, incluindo personagens e cenários a tudo o que eu já propus.

Quero que (os leitores) embarquem na sua própria imaginação usando seu repertório pessoal combinado às obras pra criar histórias malucas, fantásticas, imperfeitas. Quero que a literatura seja brinquedo. Não porque emite sons ou inclui jogos, mas porque desperta no leitor a vontade de se juntar a mim dividindo a autoria da história. Seremos sempre co-autores nessa coleção onde os espaços em branco convidam o leitor a participar da construção do enredo.

Nada contra os caminhões que andam sozinhos ou os bonecos que falam. Mas eles serão sempre caminhões que andam sozinhos e dirão sempre as mesmas frases. Fitas de cetim, como Objetos Brincantes, uma hora são trem, outra cabo de guerra.

***

Patricia Auerbach nasceu em São Paulo (SP), estudou arquitetura e trabalhou como diretora de arte e professora de história da arte. Hoje é autora e ilustradora de livros infantis, arte-educadora e uma mãe que adora brincar.

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