Por Patricia Auerbach,
autora da coleção Objetos Brincantes
A cena é conhecida. Noite de Natal, casa cheia, famílias reunidas e crianças correndo eufóricas pelo apartamento. Será que o Papai Noel vai trazer aquele boneco do personagem favorito? O caminhão que anda sozinho e toca sirene?
Meus filhos tinham 2 e 4 anos e saboreavam a noite com amigos e primos da mesma idade. Antes que os mais novos começassem a bocejar, um dos adultos deu início ao suspense:
- Eu acho que ouvi um sino!
Tensão no ar. As crianças interrompem a brincadeira. Alguém embarca no faz de conta natalino:
- Eu também, veio lá dos quartos!
Ilustração do livro A garrafa, de Patricia Auerbach, da coleção Objetos Brincantes
Enquanto as crianças disparavam pelo corredor em busca do bom velhinho, uma equipe de pais e avós tomava a sala trazendo dezenas de caixas de embrulhos coloridos que estavam escondidos na cozinha. Quando todos os pacotes já estavam sob a árvore, seguiu-se o ritual.
- Criançada, ele está aqui! Venham depressa!!
Eles correram o mais rápido que podiam, mesmo assim não viram o senhor de barba branca e roupa vermelha que tanto queriam encontrar. Mas os presentes embaixo da árvore não deixavam dúvidas de que a estrela da noite havia passado por ali.
Em poucos minutos, o chão da sala estava forrado de papéis rasgados e laços de cetim colorido. Era brinquedo pra todo lado. O boneco, além de gigante, gargalhava. O caminhão fazia manobras apitando loucamente!
Ilustração do livro O lenço, de Patricia Auerbach
Lembro de olhar em volta e sentir um desconforto com aquela cena. Os excessos cometidos por avós de primeira viagem.
O formato auto-brincante daqueles presentes que deixavam pouco espaço para a imaginação. Qual era o problema com bonecas de pano e crianças imitando vozes pra fazer de conta? Será que o lugar das crianças era mesmo o de espectadores de um caminhão que faz tudo sozinho?
Me distraí com a troca de presentes entre os adultos até que fui surpreendida por uma mãozinha gorducha me empurrando pro lado. Ele queria abrir espaço para a passagem de uma fila animada que corria pela sala gritando piuíííí, piuíííí. Os maquinistas circulavam entre os adultos segurando uma longa fita de cetim que chegara à cena como enfeite na caixa do enorme caminhão. Eles eram um trem, e o que os transformava em comboio era uma fita. O som não precisava de pilha, a brincadeira não tinha manual de instruções. A fita tinha despertado nas crianças a vontade de brincar juntos, de inventar sem rumo. Eu lembro de olhar pra eles com orgulho e abrir um sorriso de alívio, como se a história daquela noite tivesse voltado para o lugar e a magia da infância estivesse de volta.
Pouco tempo depois, em um dia de chuva, tirei do chão algumas folhas de jornal para construir barquinhos, chapéus e espadas, na esperança de que distraíssem dois meninos agitados que corriam pela casa da avó pondo em risco a integridade de dezenas de pratinhos, vasinhos e porta-retratos que estavam na família havia décadas.
A brincadeira deu tão certo que eu decidi registrar algumas cenas do nosso faz de conta pra que eles nunca esquecessem aquela aventura. Foi assim que nasceu meu primeiro livro, O jornal, uma narrativa visual que constrói com imagens as aventuras imaginárias de um menino brincando com dobraduras de papel.
Foi ali que eu entendi que quando um adulto veste um chapéu de jornal ele FINGE que é pirata. As crianças não. No minuto em que elas tocam o chapéu, elas já SÃO os piratas. E é aí que mora a beleza e o poder da imaginação infantil. Ao viver como astronautas, surfistas, rainhas ou bombeiros, as crianças se transportam de corpo inteiro para outros mundos. Ao fazer isso, exercitam empatia e criatividade. E correm riscos, porque na imaginação não há garantias de sucesso.
Depois de O jornal vieram O lenço e A garrafa, que também registram com imagens a experiência de crianças aventureiras e criativas dando vida a objetos simples do cotidiano. Para mim, a ideia de criar livros-imagem sempre foi permitir que cada leitor pudesse criar sua própria versão para a história. Eu sempre achei lindo o leitor reviver o meu faz de conta, mas no caso dessas obras minha vontade era dividir com mais gente a alegria de inventar personagens e situações a partir de objetos tão comuns. Educadores costumam chamar esses objetos de brinquedos não estruturados, porque eles permitem a interação livre e imaginativa sem que a brincadeira ou a percepção do brinquedo sigam um formato predeterminado. Para mim, esses sempre foram os Objetos Brincantes, aqueles que disparam em mim a vontade de criar e fazer de conta.
Há muito tempo eu me refiro aos três livros (O jornal, A garrafa e O lenço) como a coleção dos objetos brincantes. Eles foram saindo de forma independente ao longo dos anos, e com o tempo fui me dando conta de que eles eram naturalmente um grupo, um time, uma coleção. Por isso a partir de 2022 eles passam a ser oficialmente a Coleção Objetos Brincantes. O conteúdo não foi alterado, mas as três obras estão sendo reeditadas com logotipo da coleção na capa e acabamento padronizado. Meu desejo é que a coleção chame ainda mais a atenção dos leitores para o fato de que existem muitos objetos brincantes à nossa volta. Quero que essas obras sejam faísca para versões inusitadas a partir das minhas ilustrações. Quero que os leitores corram riscos, incluindo personagens e cenários a tudo o que eu já propus.
Quero que (os leitores) embarquem na sua própria imaginação usando seu repertório pessoal combinado às obras pra criar histórias malucas, fantásticas, imperfeitas. Quero que a literatura seja brinquedo. Não porque emite sons ou inclui jogos, mas porque desperta no leitor a vontade de se juntar a mim dividindo a autoria da história. Seremos sempre co-autores nessa coleção onde os espaços em branco convidam o leitor a participar da construção do enredo.
Nada contra os caminhões que andam sozinhos ou os bonecos que falam. Mas eles serão sempre caminhões que andam sozinhos e dirão sempre as mesmas frases. Fitas de cetim, como Objetos Brincantes, uma hora são trem, outra cabo de guerra.
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Patricia Auerbach nasceu em São Paulo (SP), estudou arquitetura e trabalhou como diretora de arte e professora de história da arte. Hoje é autora e ilustradora de livros infantis, arte-educadora e uma mãe que adora brincar.