Uma breve busca no Google pelos termos "Favela do Muquiço" e "Floresta do Camboatá" – ambos no Rio de Janeiro – revela o imaginário social que circunda esses nomes. No caso da comunidade, a criminalidade, o descaso estatal, a violência em suas mais variadas formas. Já no caso da floresta, o noticiário recente aponta para a necessidade de conservação de uma rica natureza maltratada pelo homem.
Mas, para sorte do leitor, os livros ainda são esses lugares em que se pode não apenas recriar mundos, mas também construir a base de uma realidade mais possível. Então, pela primeira vez na literatura infantil, o Muquiço e o Camboatá se transformam em personagens. A estreia é de autoria do diretor de cinema carioca Adailton Medeiros, que também faz sua inauguração na produção literária para a infância com seu primeiro livro, Papaco e Lilico: A floresta e o circo.
O livro Papaco e Lilico conta a história de dois irmãos que vivem entre o morro, a natureza e a relação com a arte e a cultura.
Publicado pela Brinque-Book, e com ilustrações da artista mineira Bárbara Quintino, o livro conta a história de dois irmãos e suas experiências no convívio constante com o cenário ao mesmo tempo urbano, natural e artístico do Rio de Janeiro. Uma obra que faz uma celebração da natureza, da cultura e da arte de ser criança – seja nos morros ou no asfalto – e que parece transpirar em vontade o que diz a canção de Caetano Veloso: “gente é pra brilhar, não pra morrer de fome”.
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Entre morros, capivaras e acrobacias
O universo ambientado em Papaco e Lilico traduz a diversidade e também as contradições da capital carioca, que congrega maravilhas naturais inigualáveis e agudas fissuras sociais. Se para olhares estrangeiros essa convergência de características contrastantes pode ser lida com excentricidade, para quem conhece o Rio de perto, sabe como essa realidade afeta a população, limitando acessos e determinando quem pode circular por onde. Para um profundo conhecedor desse cenário como Adailton Medeiros, transformá-lo em história parecia apenas uma questão de tempo.
Adailton montou o seu primeiro projetor utilizando caixas de papelão e, aos 9 anos, fez sua primeira projeção audiovisual. Aos 13, com ajuda dos amigos, fundou o Grupo Teatro Nascente. Militou nos movimentos políticos estudantis e, aos 21, foi para a região amazônica para passar dois anos - que viraram onze. Contemplado em 2008 pelo Prêmio Faz Diferença por sua articulação na formação de público e democratização do cinema brasileiro, o autor fundou a Lona Cultural Carlo Zéfiro, em Anchieta, no Rio de Janeiro, e hoje é diretor da primeira sala de cinema popular integralmente digital do país, a Ponto Cine, premiada e reconhecida pela Ancine.
Sua incursão pelo mundo das letras e infâncias carrega muito do seu espírito de contador de histórias – sejam elas narradas em uma telona ou em páginas de livro. Com seus personagens Papaco e Lilico, ele homenageia personagens reais de sua trajetória artística e pessoal, e faz um pedido de atenção para que transformemos nossa relação com o meio em que vivemos, tanto a floresta quanto a cidade, ambos carentes de um olhar que os reinvente por meio do cuidado e do senso de coletividade.
Quero que meu livro divirta, distraia, entretenha, mas também que chame a atenção para o social, o ambiental e a importância da arte como despertadora de consciência, preservação e memória. (Adailton Medeiros)
Confira a entrevista completa com o autor!
Essa é sua primeira incursão na literatura infantil. Por que se encantou por esse universo e como foi o percurso para a criação da narrativa? Papaco e Lilico, por exemplo, foram inspirados em crianças que você conheceu?
Adailton Medeiros - De tanto eu acompanhar a minha namorada, Anamô Soares, em eventos onde se apresentava, acabei sendo influenciado por ela. Anamô é professora alfabetizadora, escritora e contadora de histórias. Ela esteve entre os 50 profissionais selecionados pelo Prêmio Educador Nota 10, e vencedora do Prêmio Paulo Freire, pelo seu projeto de leitura "Lê Comigo!". De tanto ouvi-la contar histórias para crianças e conhecer outros artistas amigas e amigos seus dedicados a esse universo mágico de encantamento, a semente foi introjetada em mim naturalmente.
Papaco e Lilico foram inspirados em crianças que eu conheço e com as quais convivo, porém, seus nomes são homenagens a duas pessoas muito estimadas: o primeiro, o Papaco, me ajudou a fazer o quartinho da minha filha caçula que estava para nascer, era seu tio de segundo grau. Já aposentado, ele foi trabalhar comigo na área de teatro e música, virou o Seu Jorge, até que um dia virou estrelinha. Lilico era seu irmão, jogava muito futebol quando criança e jovem, até que conheceu uma moça e foi pedir a sua mão em casamento aos pais. Como ele tinha muita vergonha do seu nome verdadeiro, não só se apresentou à moça com o nome do seu irmão Jorge, o Papaco, mas também aos seus pais. Até as filhas do Lilico, já casadas, têm o nome do pai como Jorge. Sempre achei essa história fantástica. Aí fiz essa homenagem.
Em que aspectos é diferente ou é semelhante contar uma história em formato livro e em formato audiovisual?
É muito diferente. No audiovisual, você acrescenta uma série de elementos visuais e sonoros em movimento que dão suporte à contação da história, conduzindo o espectador quase que de uma forma objetiva, entregando os personagens de forma realista. Um garoto é interpretado por um menino de verdade selecionado por um profissional, assim como um cão é um cachorro de verdade, também previamente selecionado, e assim por diante. A trilha sonora influencia na condução das emoções, e o cenário, o set, dá a noção geográfica e temporal associados aos figurinos. É o que a gente costuma chamar de “bengalas”. Já no livro é só a história contada de forma escrita, ilustrada ludicamente, e o leitor com a sua imaginação, sem bengala alguma. Quando ela pega, quem está lendo passa a ser também uma espécie de criador, tudo é muito subjetivo.
O diretor de cinema, idealizador do Ponto Cine e agora escritor de literatura infantil Adailton Medeiros.
Enquanto autor, como você define este livro? E como você gostaria que ele fosse lido?
A princípio, como algo muito original. É a primeira vez que um livro cita a Floresta do Camboatá e ele vai além, a coloca como personagem. Por outro lado, a Favela do Muquiço, que também nunca havia entrado numa história infantil, sempre foi tratada de forma pejorativa e, em Papaco e Lilico, a floresta e o circo ganham outra conotação, é onde os meninos têm a sua casa, convivem em família, e exploram o universo de suas infâncias com o seu cardume de amigos.
Eu gostaria que ele fosse lido através da experiência do Papaco, ao ver o mundo estando de cabeça para baixo. Ou seja, funcionando como uma virada de chave na cabeça de todos que o lêem, como ocorreu comigo ao conversar com a Marina Bernardes, uma ativista a quem eu dedico o livro, uma senhora simples, moradora do Conjunto Pró-Morar, vizinho da Floresta do Camboatá. A Floresta seria derrubada para a construção de um autódromo e eu era um dos entusiastas de primeira hora do empreendimento. A Marina me despertou para o tamanho da perda que teríamos, para a tragédia ambiental que seria provocada. Convenceu-me de que aquilo tudo estava na contramão das maiores lutas travadas para a preservação das vidas no nosso planeta.
Seu livro traz elementos muito presentes nas comunidades, como a mãe que precisa trabalhar muito e os pais muitas vezes ausentes. A questão dos vínculos familiares é algo forte para você como autor? O que buscou retratar nesse sentido?
Sim, muito forte. Eu nasci no meio de uma família de proletários e pequenos comerciantes, muitas vezes atuando paralelamente nos dois segmentos. Meu pai era funcionário público municipal, levava para o trabalho mercadorias para vender para os amigos e mantinha uma barraca na feira nos finais de semana, até que montou o seu próprio negócio. Porém, minha mãe quem tinha que ficar de frente, e eu tenho mais três irmãos. Era meu pai no emprego e nas vendas na repartição pública e a minha mãe na lojinha, no armarinho. Os nossos cuidados eram entregues a terceiros, a uma empregada doméstica (por incrível que pareça, com carteira assinada, uma raridade na época). Meu pai morreu aos 40 anos. Minha mãe – viúva aos 36 anos, entre o negócio e os filhos – teve a coragem de optar por nós. Essa atitude marcou muito a minha vida.
Dona Bica não conseguiu construir materialmente o que meu pai e minha mãe conseguiram, o que de certa forma contribuiu para a decisão da minha mãe. Ela também ficou sem marido, não porque ele morreu, mas porque sumiu. No entanto, era muito mulher, tinha emprego, carteira assinada, uma importância afirmativa muito grande na cultura dos suburbanos e periféricos. Ela tinha uma casa numa favela, morava, cuidava, educava e dava o que de melhor se podia oferecer aos seus filhos.
O que eu busco retratar com é a dignidade. Quem planta dignidade colhe cidadania. (Adailton Medeiros)
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Outro aspecto que chama atenção no seu livro é a relação com a natureza e a manutenção da infância mesmo em condições de secura e precariedade. Como você definiria a infância retratada na sua história? E como ela difere da “infância pura” que aparece com frequência nas publicidades, sempre feliz e aparentemente ausente de conflitos?
Nem penso nisso. Quando se é criança não se pensa em diferença. Diferença social, racial, religiosa, sexual, econômica e tralalá é coisa de adulto. A racionalidade muitas vezes nos leva à ignorância.
A "infância pura” que aparece com frequência nas publicidades, sempre feliz, multicolorida, quase perfeita e aparentemente ausente de conflitos é a verdadeira, é a sombra da caverna de Platão. Para se ganhar dinheiro com vendas de produtos a exibimos, porém, na realidade perversa do dia a dia, a tolhemos. A fórmula mais eficaz e perversa é a de promover a infelicidade para regular e controlar a sociedade, porque quem manipula isso sabe que "gente é pra ser feliz". Felicidade é libertação, e ser liberto, conhecedor e sabedor é um perigo, ameaça a manutenção desse modelo que nos foi imposto.
O livro Papaco e Lilico oferece às crianças um espetáculo colorido, com direito a muitas acrobacias, gargalhadas, passeio na mata, encontros com jacarés e capivaras.
Há poucos livros infantis que apresentam projetos sociais para as crianças. Pode falar um pouco sobre sua escolha de trazer esse aspecto da vida na comunidade para o livro? Como tocar nesse assunto no contexto político brasileiro atual?
Tem uma música do Gonzaguinha que diz: "eu acredito é na rapaziada... é na fé da moçada...", isso para mim é um lema, uma crença de fato. A juventude é potente e a criançada é criativa, participativa, curiosa, observadora e está sempre pronta a transcender. Tanto que, para mim, a primeira e mais importante transcendência é a alfabetização. Ao se alfabetizar, o mundo para uma criança, um jovem, um adulto ou um idoso é outro.
O problema é que a elite é contra o pobre. Ela se beneficia dele explorando o seu tempo e a sua força de trabalho. E para ter êxito no seu projeto de sacrificá-lo, oferta a ele um transporte precário, sem qualquer conforto e respeito após horas trabalhadas, afasta-o geograficamente o máximo possível para manter sua moradia bem distante. (Adailton Medeiros)
O modelo é pagar menos para quem mora longe e usar o tranporte como chibata. Esgotar, surrar e fazer não pensar – a não ser no próprio sofrimento – é uma estratégia perversa daqueles que usufruem da massa.
Esse momento político que estamos vivendo é a maior prova disso, é um retrocesso. Uma reforma previdenciária contra os direitos investidos pelos trabalhadores. Uma reforma trabalhista que tira direitos de quem faz o país rodar. Uma política sistemática que em vez de atacar a pobreza, ataca o pobre em todos os aspectos e o declara como grande inimigo, expondo-o diariamente às práticas mais diversas de violência. Quando a gente tem um presidente, supostamente um líder da Nação, que diz que nunca leu um livro "porque tem muita letrinha...", o que falar, especialmente quando se é um escritor?
Penso que temos que dar voz e credibilidade a pessoas como Dona Bica, Papaco, Lilico, Gargalhada, Topetão e Tio Júnior. Eles têm a cara do Brasil. (Adailton Medeiros)
Quando morou na região amazônica, você teve convívio direto com os povos originários. Os aprendizados desse período – sobretudo em relação à visão das infâncias e da natureza – contribuíram para o seu trabalho aqui?
Sim, contribuíram e contribuem sempre na minha trajetória. Voltei para o Rio e, especificamente, para o território onde eu nasci, por causa de um líder Nhambiquara que me ensinou que "terra de índio é onde nascem seus filhos e são enterrados os seus ancestrais". Foi por isso que voltei para o mesmo lugar dos meus.
Eles respeitam muito a natureza, o verde, as águas, os bichos e principalmente os velhos, as crianças e as meninas quando viram moças, isso é muito celebrado, porque significa a possibilidade da continuação da espécie deles. Uma criança, quando nasce numa aldeia, é do pai e da mãe, porém, a responsabilidade e o seu cuidado é coletivo, é de toda a aldeia. Se uma mãe precisa ir num rio pegar um pouco de água, ela não precisa pedir a alguém para tomar conta do seu filho, naturalmente todos vão cuidar. Isso me faz lembrar muito da minha infância, porque de certa forma onde eu morava era assim, especialmente em relação às pessoas mais velhas que me viam na rua e me mandavam de volta para a casa, passavam-me pitos quando eu estava fazendo arte e me serviam café com pão e até almoço. Papaco e Lilico adoram ouvir as histórias contadas pelos mais velhos, obedecem a eles e não retrucam quando ganham broncas na rua porque estão fazendo arte.
Na sua visão como criador, existe um denominador comum entre as crianças de diversos lugares, condições sociais, contextos econômicos, credos e classes? Se sim, qual? A criança na floresta, por exemplo, é a mesma do circo e da favela?
Sim, existe. Como cito no livro: "Criança é sempre feliz porque tem olhos de arco-íris e vê a vida colorida". As crianças da floresta, do circo, da favela, da China, da África do Sul, da Austrália, internamente, são muito parecidas, conforme vamos crescendo que nos tornamos diferentes por causa da nossa cultura, nossos credos, nossas amarras sociais.
Certa vez li um artigo de um especialista, não me lembro o nome, que deu um exemplo fantástico sobre isso: "No atraso de um voo internacional, várias famílias de diversos países tiveram que aguardar por quatro horas no saguão do aeroporto, e durante todo esse período nenhum adulto interagiu com outro estrangeiro, ao contrário das crianças, seus filhos, que em menos de meia hora estavam todos brincando juntos, correndo de um lado para o outro e se entendendo.
Qual a importância da cultura para a autoidentificação das crianças e também para promover ideias de infâncias plurais, reais e conectadas com questões humanitárias?
É nessa fase que a criança recebe as primeiras referências para construir a sua personalidade e o seu senso de identidade, é quando começa a perceber e a entender as normas sociais que regem a convivência humana.
O mais importante é apresentá-las às diversidades culturais para que aprendam a ser tolerantes, educadas, éticas, solidárias, democráticas, e assim se tornem adultos saudáveis socialmente para conviver e respeitar as diferenças. (Adailton Medeiros)
(Texto de Renata Penzani)