No livro Amanhã, da escritora, ilustradora e artista plástica Lúcia Hiratsuka, a escola é retratada como um lugar onde coisas importantes acontecem. É também o cenário comum de três narrativas entrelaçadas em tempos-espaços distintos. Três meninas de gerações diferentes – avó, mãe e filha – dividem com o leitor as sensações de sair de casa para ir estudar pela primeira vez, cada qual com suas próprias subjetividades em cena. As três anseiam pelo dia de amanhã, em que haverá aula. Porém, para uma delas, relembrar o período da escola não traz memórias fáceis. Em plena tensão da Segunda Guerra Mundial, as escolas brasileiras foram fechadas e os imigrantes japoneses eram impedidos de ir e vir.
As três meninas percorrem caminhos cheios de dificuldades para chegar à escola, o que parece uma realidade muito distante de nosso tempo - mas não é. Apesar de a maioria das escolas estar situada em centros urbanos, o Brasil é feito de escolas plurais e de crianças e professores que enfrentam os mais diferentes desafios na educação - inclusive o caminho percorrido para chegar à sala de aula.
No livro Amanhã, três histórias de gerações diferentes se entrelaçam em um cenário comum, a escola.
Com um enredo aparentemente simples, mas cheio de entrelinhas significantes, a obra de Hiratsuka possibilita enxergar as histórias que vieram antes da nossa. Se mais crianças podem ir à escola hoje do que podiam nossos antepassados, a conquista é resultado de muita luta e evolução histórico-social. Ainda que a realidade escolar de milhões de crianças brasileiras ainda esteja longe do ideal, em termos de acesso e qualidade, há uma vasta diversidade escolar, sobretudo considerando a dimensão territorial e multiplicidade cultural que marca o país, e que é rica por si só.
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Ir à escola: um direito fundamentalmente político
Seguindo a trilha de Sayuri, Orie e Lucy – personagens de Amanhã – o leitor pode mergulhar em diversos contextos escolares que fazem parte do panorama educacional brasileiro em toda a sua complexidade e disparidade. Se todas as pessoas pudessem ter contato com o desafio de ir à escola para crianças indígenas, quilombolas, de áreas rurais, de populações ribeirinhas ou nos sertões adentro, certamente a consciência sobre os desafios da educação no país seria ampliada.
No asfalto das cidades ou no chão de terra das comunidades quilombolas, indígenas e ribeirinhas, há um denominador comum: o fato de que a educação é direito de todas as crianças, como estabelecido pela Constituição Federal, no artigo 227, e também no ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente).
De acordo com dados do Censo Escolar, 3.541 (1,9%) escolas, entre as 178,3 mil instituições de ensino básico do país estão localizadas em territórios indígenas e oferecem conteúdos específicos e diferenciados, de acordo com aspectos etnoculturais. Quando se considera as escolas quilombolas, o Censo Escolar aponta que há 2.526 instituições em todo o Brasil, somando 51.252 professores e 275.132 matrículas de estudantes da educação básica.
Ou seja, não estamos falando apenas da questão logísta na diversidade dos acessos à escola, dos diferentes caminhos a serem percorridos para chegar a sala de aula em um país tão vasto e com configurações territoriais tão distintas como o Brasil. Para refletir sobre a oferta de uma educação de qualidade a diferentes populações, é preciso pensar os aspectos sociais e culturais que tornam a aprendizagem conectada a cada território e que fazem sentido para a realidade dos estudantes.
Para Sintia Carvalho, do Coletivo Nacional de Educação do MST (Movimento dos Sem Terra), para muitas crianças em contexto de resistência política, esse direito básico se traduz em uma necessidade ainda maior. “A educação escolar é de suma importância para a formação humana do sujeito, sendo um espaço de socialização, interação, conhecimento, vivências e experiências”.
“É imensurável a importância da escola para a comunidade e o sujeito que dela faz parte, seja quem estuda, trabalha, ou contribui voluntariamente. Existe uma relação cultural, política, afetiva e de sociabilidade entre a comunidade e a escola.” (Sintia Carvalho, do Coletivo Nacional de Educação do MST)
Sintia chama atenção para o fato de que a educação no Brasil, ainda que posta em lei como inalienável, não é algo que está dado. Em muitos contextos é preciso que grupos da sociedade civil lutem constantemente para que o acesso à escola continue existindo. “É um desafio ter escola do campo nas comunidades, uma luta diária, de permanência da própria escola, resistindo contra o fechamento. Sem contar que temos muitas escolas com estruturas precarizadas, muitas delas sem água, energia, recursos tecnológicos, dentre outros”.
Atualmente, há mais de 2 mil escolas públicas construídas pelo MST, que garantem o acesso à educação de 200 mil crianças e adolescentes, além da alfabetização de 50 mil adultos. Exemplo disso é a Escola Itinerante, projeto criado no contexto do Movimento Sem Terra, que considera e acolhe a condição de mobilidade de crianças, jovens e adultos em contexto de assentamento.
"A Educação é uma das áreas prioritárias de atuação do MST, que desde a sua origem desenvolveu processos educativos e incluiu como prioridade a luta pela universalização do direito à escola pública de qualidade social, da infância à universidade". É o que informa o texto oficial do Movimento, que busca construir coletivamente uma noção de prática educativa associada a projetos de emancipação social, não só da criança, mas de todo indivíduo.
A Escola Itinerante, do MST, é um formato que acolhe a condição de itinerância em sua pedagogia, e possibilita às crianças uma maior conexão entre realidade e escola.
Escolas não urbanas
Coordenado pelo Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais), o Censo Escolar é a principal pesquisa estatística da educação básica no Brasil. O último levantamento finalizado aponta que, em 2021, foram registradas 46,7 milhões de matrículas nas 178,4 mil escolas de educação básica no Brasil (cerca de 627 mil matrículas a menos em comparação com 2020, o que corresponde a uma redução de 1,3% no total).
Segundo o Censo Escolar, nesses contextos, as matrículas da educação básica são encontradas majoritariamente na área urbana (88,5%). Na rede privada, 99,0% das matrículas estão em escolas urbanas. Na rede pública, as escolas municipais são as que apresentam a maior proporção de matrículas na área rural, com 19,0%. As regiões Norte, Nordeste e Sudeste são as que possuem maior número de crianças e jovens matriculados em escolas não urbanas.
Como é estudar em um quilombo? Lugar de enraizar e conhecer
Uma educação feita para todos, que valoriza e procura conhecer a nossa cultura e a cultura do outro, que respeita as subjetividades e individualidades e que está à margem de paradigmas excludentes. Parece um sonho? É a premissa básica da educação escolar quilombola, que trabalha essencialmente no enfrentamento de padrões elitizados e eurocêntricos na hora de transmitir conteúdos para as crianças e os jovens.
Para Ivanildo Luiz Monteiro Rodrigues dos Santos, pedagogo e professor de filosofia, a Educação Escolar Quilombola é acima de tudo plural. "Em sua maioria, ela atende comunidades rurais ou campesinas, porém, há, como é o caso em Palmas, comunidades quilombolas urbanas", conta o professor, que trabalha como Técnico Pedagógico na Equipe de Educação Escolar Quilombola da Secretaria de Educação do Paraná. Em sua rotina de trabalho, ele atua em dois colégios estaduais paranaenses, nos municípios de Adrianópolis e Palmas, e também junto a 54 escolas que atendem estudantes oriundos de comunidades quilombolas e tradicionais negras.
"A criança é acolhida como um ser em processo, em quem se deposita a esperança ativa de dar seguimento aos valores tradicionais, atualizando a vida da comunidade na sua forma de ser e se expressar." (Ivanildo Luiz Monteiro, pedagogo)
Para Ivan, conhecimentos e costumes dos povos de quilombos devem por direito ser contemplados no currículo escolar e adotados no processo de mediação pedagógica junto aos estudantes oriundos das comunidades quilombolas. Porém, trata-se de um desafio que esbarra em questões individuais e coletivas.
“A maior dificuldade é repassar os valores da tradição e encorajar crianças e jovens a levar o legado adiante. Principalmente devido às barreiras da formação escolar, muito por conta do desconhecimento da cultura quilombola,que está pautada na subjetividade local de um grupamento. Além do preconceito, da ausência de Formação Inicial (nos cursos de licenciatura, essa modalidade de ensino não é trabalhada) e da precariedade na Formação Continuada das/dos educadoras/educadores”, pontua o professor.
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Por mais escolas que dialoguem com a vida real
“...me embrenhava pela mata nos caminhos de ida e volta, e aprendia sobre ervas e raízes. Aprendia sobre as nuvens, quando haveria ou não chuva, sobre as mudanças secretas que o céu e a terra viviam. Aprendia que tudo estava em movimento, bem diferente das coisas sem vida que a professora mostrava em suas aulas. […] Ela não sabia por que estávamos ali, nem de onde vieram nossos pais, nem o que fazíamos, se em suas frases e textos só havia histórias de soldados, professor, médico e juiz.”
O trecho acima faz parte do premiado Torto arado, romance criado pelo escritor baiano Itamar Vieira Junior, e que retrata a luta diária de comunidades apartadas dos grandes centros urbanos-capitalistas, além de todas as contradições que inevitavelmente passam por essa resistência. O excerto foi lembrado pela professora Renata dos Santos Kaspreski, do Colégio Estadual Quilombola Maria Joana Ferreira, em Palmas (PR), como um exemplo potente de como a escola pode nocivamente se deslocar da realidade de muitos estudantes. É justamente na borda dessa cisão que trabalha a educação quilombola, para manter as raízes e evitar despertencimentos que são a fonte do desinteresse pela escola.
"Tentamos fazer com que o aluno não se sinta este estranho no ambiente escolar, e, para isso, inserimos em todas as disciplinas do currículo conteúdos que contemplem a valorização do sujeito quilombola e do sujeito negro". (Renata Kaspreski, professora)
Para a educadora, esse senso de pertencimento deve ser trabalhado por meio de todas as disciplinas, fazendo com que os conteúdos sejam abordados de forma mais contextualizada e conectada às vivências dos estudantes "´É a valorização da história do seu povo, da sua família, nas aulas de história; a valorização dos saberes da sua avó nas aulas de química; o estudo de personalidades negras em inglês; o estudo das paisagens da sua comunidade nas aulas de geografia, ou o estudo de jogos africanos em matemática”, explica Renata.
"A personagem [de Torto Arado] retrata o estranhamento dela no espaço escolar. A escola não tinha vida para ela, porque nela ela não se via. Não enxergava a possibilidade de si naquilo que era ensinado. (Renata Kaspreski, professora)
Renata conta que o Coletivo de Educação de Escolar quilombola é composto por professores quilombolas e não quilombolas, atuantes em escolas quilombolas e em escolas que recebem alunos quilombolas. O objetivo do coletivo é discutir pautas e desafios profissionais relacionados à educação escolar quilombola, além de fortalecer profissionais e alunos. A escola onde atua atende cerca de 250 estudantes, que, apesar das dificuldades estruturais, são contemplados em suas subjetividades.
"Acredito que o principal impacto da educação escolar quilombola nos alunos é a afirmação da sua identidade de maneira positiva. É conhecer e reconhecer sua história, a trajetória dos seus, a história do lugar onde vive, onde nasceu. É ver os seus serem valorizados, suas histórias recontadas e reconhecidas." (Renata Kaspreski, professora)
No Paraná, com a aprovação do Novo Ensino Médio, colégios quilombolas como João Surá e Maria Joana Ferreira criaram itinerários próprios, construídos pelas comunidades e pelos professores, pensados para os estudantes quilombolas - e o coletivo teve importante papel nesse procsso. Vale explicar que, na nova estrutura proposta para o Novo Ensino Médio, os itinerários são a parte flexível do currículo, em que os estudantes podem escolher as aprendizagens nas quais querem se aprofundar. " Além disso, conquistamos a construção de uma disciplina feita por nós quilombolas e voltada para nós, intitulada Ancestralidade negra e luta por direitos, que busca valorizar a nossa história e ancestralidade e percorrer o processo diaspórico do nosso povo", conta a educadora.
"Trabalhamos com uma abordagem de educação pós-crítica e decolonial, que visa o fortalecimento identitário dos alunos negros/quilombolas não só no contexto escolar, mas na sociedade", (Renata Kaspreski, professora)
Buscar referências do cotidiano das crianças e ressignificá-las, trazendo outras lentes para que elas se conheçam e também tomem contato com outras formas de ser. Esse é um movimento natural da literatura, que, ao apresentar diferentes mundos como são - mas também como poderiam ser - convida à recriação infinita da realidade. A escola, quando apoiada em uma abordagem humanista, pode e deve fortalecer e afirmar esse movimento. É o que obras como Amanhã, de Lúcia Hiratsuka, permitem ao leitor: a um só tempo reconhecer-se e reconhecer o outro. “O objetivo da educação é contribuir para que os alunos sejam sujeitos críticos, políticos, participativos e que valorizam sua ancestralidade e sua origem”, defende Kaspreski.
(Texto de Renata Penzani)
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