As baleias trabalham? No mar tem ralo? O céu é o país dos pássaros? Se a luz pisca, então ela tem olho? Perguntas como essas habitam o livro Vamos desenhar palavras escritas?, da Companhia das Letrinhas (2023), de um jeito tão natural quanto as interrogações povoam a cabeça das crianças. Como se entoassem ao contrário os versos da famosa canção de Gonzaguinha, O que é, o que é?, as autoras parecem valorizar antes a interrogação aberta que a solução das coisas: “eu fico com a filosofia das respostas das crianças”.
A obra tem autoria da poeta, editora e tradutora Sofia Mariutti, que criou o texto, e da artista gráfica Yara Kono, que assina as ilustrações, responsáveis por compor, juntamente com o jogo verbo-visual, a brincadeira das palavras.
Os bichos e as coisas ganham novas possibilidades de ser em Vamos desenhar palavras escritas?
Autora de A orca no avião (Editora Patuá, 2017) e tradutora de livros infantis como A visita, de Antje Damm (Companhia das Letrinhas, 2016), Os voos de Thiago, de Philip Waetchter (Companhia das Letrinhas, 2016), e A orquestra da lua cheia, de Jens Rassmus (Companhia das Letrinhas, 2013), Sofia faz aqui a sua estreia na literatura infantil.
Já a premiada Yaka Kono, membro da editora portuguesa Planeta Tangerina, ilustrou diversos livros publicados no Brasil, como Em cima daquela serra (2013), do poeta Eucanaã Ferraz, pela Companhia das Letrinhas, é uma das ilustradoras de Extraordinárias: mulheres que revolucionaram o Brasil, da Seguinte (2017) e ilustrou ainda A ilha (SESI-SP, 2014), de João Gomes de Abreu, e Rimas de cá e de lá (Peirópolis), de José Jorge Letria e José Santos.
Vamos desenhar palavras escritas? é um livro-poema ilustrado que passeia pelas diferentes formas de alterar o significado fixo das palavras, e de transformá-las por meio de imagens – reais e simbólicas. Um poema-história que, como o fazem as crianças, questiona nem sempre para achar respostas, mas para poder perguntar mais e melhor.
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A infância da linguagem
Foi quando a pequena Mira, filha de Sofia Mariutti, hoje com cinco anos, começou a descobrir suas primeiras palavras que o germe para criar Vamos desenhar palavras escritas? nasceu. Naquela altura, para ela, as palavras não eram somente um apanhado de letras enfileiradas, mas brinquedos de compreensão do mundo.
O movimento de reinventar sentidos a partir de um vocabulário comum é algo próprio da poesia, e pode ser sentida em diversos autores, da teoria à prática. Para o poeta francês Mallarmé, a criação poética existe porque as línguas são múltiplas e imperfeitas, e delas se pode criar e recriar ao infinito. Neste livro, esse gesto encontra o espírito questionador e naturalmente exploratório da infância, e juntas podem irromper todo um outro mundo.
As perguntas vêm da admiração com o que é novo ou já está dado. Elas podem levar a uma postura filosofante ou poética, e as duas muitas vezes aparecem misturadas em discursos e em poemas. (Sofia Mariutti, escritora)
Se o poeta Manoel de Barros – mestre no ofício de recriar a linguagem em seu cerne – adivinhou alguma coisa quando escreveu que as palavras querem ser tiradas de seu “estado de dicionário”, é que nós, adultos, temos muito a aprender com as crianças. É dessa matéria brincante que se alimenta o livro de Sofia e Yara.
Somos todos leitores. Somos todos bichinhos curiosos e temos uma maneira própria de ver o mundo, de ler um livro, de ouvir uma canção… Alguns serão poetas? Quiçá sim. Serão também filósofos? Talvez... E viva a diferença! (Yara Kono, ilustradora)
Longe dos filtros culturais e sociais que a vida adulta muitas vezes impõe, as palavras podem ter múltiplos sentidos. Não por acaso, essa é uma das habilidades que nos faz humanos: a possibilidade de racionalizar significados e ver nas coisas outras coisas. Então, quem consegue se manter mais criança torna-se também mais humano? Há histórias que surgem para provocar os adultos, assim como acontece em um dos trechos de Vamos desenhar palavras escritas?: “O que tem no seu olho? Lá dentro?”
A criança vive fazendo perguntas, grandes e pequenas, algumas delas nos levam a filosofar, coisa que talvez a gente não fizesse sem elas. Como quando minha afilhada perguntou pra mãe: ‘nessa foto eu não estava porque eu já tinha morrido?’ (Sofia Mariutti, escritora)
De que forma os adultos podem se conectar com essa prática infantil de enxergar o mundo como uma grande aprendizagem? Conversamos com as autoras para ouvir o que elas pensam sobre infância, poesia, palavras, desenhos. E sobre todas essas coisas conjugadas, dentro e fora de um livro. Na sequência, o leitor pode ler as entrevistas completas.
No lançamento de Vamos desenhar palavras escritas?, na Livraria Miúda, em São Paulo, Sofia Mariutti e a filha, Mira, que ofereceu os primeiros lampejos para a criação do livro-poema
Bate-papo com a poeta Sofia Mariutti
Vamos desenhar palavras escritas? surgiu do convívio com sua primeira filha. Como foi essa documentação inicial para o livro? Você anotava o que ela dizia no dia a dia, ou criava livremente inspirada nas observações dela?
Sofia Mariutti: Sim, foi totalmente inspirado na Mira e nos seus anos de aquisição da linguagem. Ela acaba de fazer cinco anos, e comecei a escrever o poema que deu origem ao livro quando ela tinha um ano e pouquinho, ou seja, uns quatro anos atrás.
Antes mesmo de ela juntar duas palavras, registrei aquilo que considerei ser sua primeira metáfora – quando ela olhou para uma cobra de brinquedo, desmembrada em pequenas falanges, e disse “trem”. Nunca vou saber se foi uma substituição intencional, um jogo, ou se ela ainda estava entendendo a diferença entre os dois objetos, mas guardei aquele acaso, assim como muitos outros que vieram depois.
O poema do livro nasceu como uma lista exaustiva e infinita, que até recitei em alguns aniversários dela, para celebrar. Depois comecei a trabalhar em mais detalhe as frases e as ligações entre elas. Mostrei o poema para a [poeta e editora] Alice Sant’Anna e dela veio a ideia do livro. A [editora] Mell Brites abraçou a ideia, e aí sentei com ela e o Antonio Castro, que se tornou o editor do livro, para trabalhar o poema pensando em um livro ilustrado. Foi nesse momento que eles deram a ideia do título do livro. Era um dos versos. Achei lindo, adoro a ideia de que “escrever” seja “desenhar palavras escritas”.
Depois disso, ainda cortei muitas frases, mudei um pouco outras, mexi e remexi na ordem. É um poema vivo, que deve entrar também no meu próximo livro de poemas, e segue sendo mexido.
[Quem quiser saber mais sobre a criação deste livro, a autora escreveu sobre no texto Vamos desenhar palavras escritas?, publicado na "Caraminholas", seção do Blog da Letrinhas]
As cores e colagens de Yara Kono acrescentam camadas de interpretação ao texto, em uma linguagem imagética que privilegia a infância
Como foi a relação dela com o processo de criação do livro, e como ela se relaciona com ele, agora pronto?
Sofia Mariutti: A Mira participou de cada etapa da criação das ilustrações, que eu mostrava pra ela conforme a Yara nos mandava, pra saber o que ela via, se ela gostava, como reagia. Foi fundamental mostrar cada imagem para ela sentir a temperatura.
Hoje, com o livro na mão, ela diz que quer ser editora quando crescer, e que se pudesse já começava agora (5 anos!) a estudar isso. Eu disse que ela vai poder estudar já já, mas enquanto não chega a faculdade ela pode participar de todos os livros que eu fizer, e assim ela vai aprendendo.
A maternidade transformou a sua relação com o universo infantil?
Sofia Mariutti: Sem dúvida. Acho que os adultos têm uma tendência de achar tudo o que é da infância “menor”, como pensar por exemplo que você vai começar escrevendo livros infantis para depois escrever livros para adultos, o que é uma asneira, livros ilustrados são rebuscadíssimos. A própria palavra “infantil” ganha às vezes um uso pejorativo.
A infância pode ser um lugar sofrido e solitário, de opressão, de alienação. Muitas crianças não são autorizadas a vivê-la plenamente. (Sofia Mariutti, escritora)
Eu já tinha um flerte com a literatura infantil, fazendo pareceres, traduções, e organizando um livro infantil do Leminski. Mas não tinha ideia da dimensão desse universo, e hoje já não sei quem curte mais os livros que a gente lê à noite, a Mira ou eu. A infância se mostrou pra mim um terreno bem fértil para plantar e colher poesia. E se a gente não se fecha, se a gente se deixa atravessar por ela, ela invade nossa fantasia e nossa capacidade de fabulação.
Este é o primeiro livro infantil de sua autoria, mas você traduziu vários outros e também publicou um livro de poemas. Esses três ofícios se encontram? O Paul Valéry dizia que “o poeta é uma espécie singular de tradutor, que traduz o discurso comum, modificado por uma emoção, em linguagem dos deuses”. A emoção está presente de uma forma diferente ao criar uma história do zero?
Sofia Mariutti: Com certeza os ofícios se encontram. Editar, traduzir, escrever, escrever livro infantil, essas atividades estão ligadas umas às outras, uma alimenta a outra. Quando você traduz um livro, você aprende a escrever de novo, diferente. Essa visão essencialista do Valéry faz todo sentido pra mim, podemos pensar que sempre estamos traduzindo alguma coisa ao criar: uma imagem, um sentimento, um pensamento.
O que é poesia para você?
Sofia Mariutti: Tem alguma coisa do gesto do corpo na água, uma coisa inaugural, um susto, um sonho dentro de um som, as imagens que nunca acabamos de ler.
A artista visual e designer gráfica Yara Kono, autora das ilustrações de Vamos desenhar palavras escritas?
Bate-papo com a ilustradora Yara Kono
Pode contar um pouco sobre suas ideias de criação ao ilustrar este livro? Como você escolheu a técnica, os materiais e o conceito?
Yara Kono: Estava, na altura, a trabalhar, entre outros materiais, com cartolinas e letraset, por conta de uma exposição que eu e a Maria Remédio, querida amiga e ilustradora, fizemos no âmbito do FOLIO [Festival Literário Internacional de Óbidos, em Portugal] e decidi manter o registro. A colagem é uma técnica recorrente, que utilizo aliada ao Photoshop, onde sempre acabo por finalizar as ilustrações.
As ideias foram fluindo e se materializando desde a primeira leitura do texto. A Sofia deu-me liberdade na criação das ilustrações, mas também deu-me algumas ideias e sugestões, que foram muito importantes no decorrer de todo o processo.
O que é desenhar com palavras e o que é escrever com desenhos? Como essas duas coisas se comunicam com a infância?
Yara Kono: São duas questões que acabam por ser a essência de um álbum ilustrado. Em um bom livro ilustrado, texto e imagem se complementam, coabitam em harmonia.
Como os adultos podem se conectar com a habilidade de enxergar o mundo com uma grande aprendizagem?
Yara Kono: Dando espaço às crianças para serem crianças. E brincar. E errar. E acertar. E, sobretudo, não forçar de todo essa conexão.
A conexão com a poesia flui. Ela vem naturalmente. E se não vier, tudo bem, não há problema. (Yara Kono, ilustradora)
O que é poesia para você, e como se relaciona com o trabalho de ilustração?
Yara Kono: É ter liberdade de me expressar e é também dar ao leitor a liberdade de interpretar. Acho que acaba por ser a resposta à sua primeira pergunta, de forma mais poética.
(Texto: Renata Penzani)