
Autores e ilustradores negros para conhecer e celebrar
De Emicida a Kiusam de Oliveira, de Chimamanda Ngozi Adichie a Otávio Junior: veja autores e ilustradores negros para apresentar às crianças
Uma mulher empurra um carrinho de mão azul cheio de frutas. Conforme ela avança, seu filho toma a palavra e nos leva na direção oposta, no resgate de um passado que ele só ouviu falar. Em Azul Haiti (Companhia das Letrinhas, 2025), primeiro livro infantil da multiartista e escritora Paty Wolff para o Grupo Companhia das Letras, uma criança narra a saga de sua família, que deixou o Haiti sem jamais deixá-lo. Migrantes, refugiados que vêm para o Brasil em busca de uma nova vida.
O carrinho azul é levado pela mãe, enquanto a criança olha para trás - Azul Haiti (Companhia das Letrinhas, 2025)
Azul Haiti é a história de uma mãe e de uma criança, mas também de milhões de pessoas ao redor do mundo. O refúgio é uma questão contemporânea, de um planeta assolado por guerras, misérias e, cada vez mais, também por catástrofes climáticas. A Acnur, agência da Organização das Nações Unidas para refugiados, estima que até meados de 2024, 122,6 milhões de pessoas no mundo foram obrigadas a se deslocar - o que equivale a 1 em cada 67 indivíduos ao redor do mundo. No Brasil, atualmente, mais de 153 mil pessoas são reconhecidas como refugiados e mais de 74 mil reivindicam um status semelhante. “O que tem de especial nesse livro é o olhar sobre essa temática (do refúgio), mas a partir da perspectiva de uma criança.São as memórias de uma mãe, mas contadas pela criança. A história que ela conta é uma história que foi contada a ela pela mãe e que, nesse livro, será contada outra vez. É a importância da narrativa na perpetuação dessa memória que vem de outro país”, comenta a editora do livro, Débora Alves.
De maneira sensível, a narrativa escrita e ilustrada por Paty Wolff fala sobre memória e resistência. Sobre o esforço de criar raízes pisando em um novo chão e mesmo assim permanecer deslocado em muitos ângulos. Mas resistir.
O azul que dá nome ao livro é o fio condutor da história, saindo da bandeira do Haiti para pintar o mar, o carrinho de mão que a mãe desliza pelas ruas em busca de seu sustento e vários elementos que vão costurando visualmente a narrativa. As imagens seguem o léxico das obras plásticas da autora, nas cores vibrantes e na técnica de recorte do papelão, que cria padrões, saliências e reentrâncias. É uma obra com muitas camadas, assim como a relação de Paty com a migração, a memória e busca de uma ancestralidade.
A autora também vem de uma família de migrantes e teve um pedaço de suas raízes apagadas, algo que se reflete em toda a sua obra - artística e literária. Em entrevista ao Blog Letrinhas, a autora falou sobre como se tornou artista e, mais tarde, autora, da busca que guia sua produção e de sua própria história familiar.
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Paty Wollf: uma artista que transita entre múltiplas linguagens
Paty Wolff: Eu gosto muito de pesquisar o corpo negro no mundo, como diáspora. No caminho para o meu ateliê [em Cuiabá], tem uma comunidade de vendedores ambulantes informais que vieram do Haiti. Cuiabá foi uma das cidades que mais receberam haitianos - muitos só passam, mas muitos ficam. Todos os dias os vejo na luta. Mulheres, crianças, trabalhadores - cada um com seu carrinho de mão, oferecendo seu produto. Roupas, óculos eletrônicos, trançado de cabelo… Vejo-os falando em francês ou em criollo, um dialeto. E isso tudo foi mexendo comigo. Fui vendo aquelas mulheres e comecei a me dedicar a pinturas de figuras femininas fortes e depois fui pintando homens, algo muito ligado ao corpo do meu pai, trazendo essa afetividade que acho que eu não tive.
Pensei então em uma história sobre a migração haitiana, trazendo essa diáspora do corpo negro, mas sob a perspectiva de uma criança. A mãe que migra e a criança que nasce aqui, e que mesmo assim sempre vai ser vista como imigrante. O corpo dela sempre será apontado como um corpo deslocado do seu lugar.
Imaginei esse trajeto de um carrinho de mão pesado, da mãe que está ali carregando tudo com a criança ao lado.
O azul do título marca presença em cada página de Azul Haiti (Companhia das Letrinhas, 2025)
Paty Wolff: O livro é resultado de momentos de muita troca com minha editora, a Débora Alves. Para mim, é importante que outras pessoas leiam, principalmente as primeiras versões. Encaro a construção da história como uma sementinha, e vou trocando impressões para saber se as pessoas acham legal, se faz sentido. Mas depois que a história está resolvida, quando vou para a parte das pinturas, fico mais reclusa, pensando em como conceber as imagens que dialogam com o texto, mas que trazem também outras possibilidades de leitura. Eu enxergo uma solidão no ateliê. Penso como as imagens se atravessam, mas como podem divergir e ainda penso no livro em si como objeto. Essa dimensão da estética, como artista visual, me puxa muito.
Paty Wolff: O projeto nasce como “Azul cobalto”, porque vi um carrinho de mão dessa cor, de um dos ambulantes, que me chamou muito a atenção. Mas no texto original, aparecia muito o termo “azul” e foi ficando repetitivo. Por isso, já havíamos decidido deixar o azul mais nas imagens, fora do texto. Só que durante os processos de pensar e refinar a narrativa, comecei a entender que esse azul estava presente em muitas coisas - estava no mar haitiano, estava na bandeira do Haiti… e aí percebi a cor seria esse fio condutor, costurando os elementos sempre com ligação ao Haiti. O desafio foi pensar em como utilizar essa linguagem em todas as páginas, fazendo o azul saltar. Como o carrinho não ia percorrer o livro todo, precisávamos ter outros elementos azuis, que foram ganhando mais visibilidade. A carteira de trabalho, o próprio mar do Haiti…
Paty Wolff: É uma loucura até hoje. Eu nunca tive esse sonho de ser artista, porque cresci na periferia de Cuiabá (MT), em um bairro bem periférico no sentido geográfico e econômico. Eu sonhava em ser advogada, ter um um desses trabalhos “de verdade”. Ainda há certo preconceito em torno de ser artista, esse estigma de ser alguém à toa. Mas logo que terminei meu mestrado em Geografia, tive uma crise existencial e fui fazer um curso no Sesc. Eu sempre desenhei desde criança. Me lembro que não pedia brinquedos de presente, pedia materiais artísticos. Desenhava com cola colorida, experimentava sobre madeira… Mas foi só depois dessa crise, quando adulta, que comecei a encarar o caminho da arte como uma possibilidade real. A pintura veio primeiro, depois a cerâmica. E depois a literatura.
Paty Wolff: A escrita acadêmica me saía fácil. Sempre tive uma habilidade com a palavra, pra mim foi gostoso escrever uma monografia… Depois de começar a pensar sobre minhas origens, minhas raízes, minha mãe é quem me encorajou a escrever. Ela foi a primeira que me incentivou a fazer um livro. Lembro que eu sempre a vi ler e isso despertou em mim a vontade de me tornar leitora também.
Essa coisa da escrita chega para mim em um momento muito visceral, que foi o meu puerpério [Paty é mãe de Léo, de 5 anos]. Senti que essas histórias que deram origem ao livro Como pássaros no céu de Aruanda (Entrelinhas, 2010) tinham que ser contadas, em um parto de mim mesma. O livro nasce de um momento em que eu não conseguia pintar nem fazer cerâmica, com um bebê pequeno para cuidar… Então fui escrevendo os textos no meu celular mesmo. A inquietude me move muito. Crio muito em todas as frentes. Se eu não pinto, estou fazendo cerâmica. Se não estou fazendo cerâmica, procuro outras coisas…
Às vezes a pintura não dá conta do que eu quero trabalhar, então recorro à palavra. Outras vezes fico satisfeita com a tela. Mas tudo me move.
Paty Wolff: Não! Foi nas artes que eu entendi que eu ainda sou geógrafa. Enquanto estava estudando Geografia, não enxergava as relações das minhas origens, das migrações… Estava muito mais ligada a outras pautas: a questão agrária, dilemas fundiários, campesinato, direito à terra, povos indígenas. E não olhava principalmente para as questões raciais ligadas à negritude, que me atravessam. Ter a oportunidade de estar em uma universidade, de fazer Geografia, foi um momento de maturação. Foi só nesses últimos anos que comecei a entender o quanto a geografia me atravessa e o quanto ela está nesse olhar que eu tenho sobre o mundo, que se reflete tanto nas minhas artes quanto no que eu escrevo.
O papelão, que é matéria para os meus trabalhos, eu enxergo como um corpo. Nas minhas obras, a pintura se desloca nele. O papelão é um território. Um terreno com relevos, com sulcos, com cavas. Tudo isso para mim está ligado à Geografia.
A padronagem no papelão faz parte do repetório de Paty Wolff como artista visual e ajuda a compor as ilustrações de Azul Haiti (Blog Letrinhas, 2025)
Paty Wolff: Meu pai é de Mato Grosso do Sul, mas os pais dele, meus avós, eram da Bahia. Sei que foram parar em Rondônia, onde eu nasci, mas não sei como chegaram. A família da minha mãe também é migrante - foram do Paraná para Rondônia.
Somos uma família de muitos migrantes. Mas do lado da minha mãe, sabemos os nomes das pessoas, de onde vêm, o que faziam, quem é primo, quem é tio…Já sobre a família do meu pai, não conhecemos quase nada nada. Meus avós vieram de fazendas na Bahia, mas ninguém sabe se era um lugar deles, se eram trabalhadores, como eles chegaram até lá… Desde que a minha avó, mãe do meu pai, faleceu, as memórias da família foram para o túmulo com ela. Quando a gente é novo, não tem noção das perguntas que deveria fazer antes que seja tarde.
Comecei a entender a experiência da minha família diante de um contexto de Brasil, onde esse processo de desenraizamento existe sobretudo nas famílias negras, que têm esses buracos em suas histórias. Isso envolve preconceito, silenciamento, pensar em uma ascendência de escravizados, que às vezes ainda é motivo de vergonha.
Paty Wolff: Acho que uso a arte como um lugar da fabulação, de imaginar minha avó sentada, contando as histórias e fazendo bolinho - mesmo que ela não fosse essa pessoa. Através das palavras e imagens é que eu tento construir as memórias que foram perdidas. Porque as memórias que eu tenho, principalmente com essa descendência afro, essas conexões não existem. Tudo é criado. São tentativas de conexão, de quebra de preconceito. Na sociedade a cultura afro brasileira ainda é muito mal percebida - tudo é maligno, tudo é demoníaco.Tudo isso, claro, fruto de preconceitos.
Acho me sinto conectada a essa origem afro da minha família, mas dentro de uma visão decolonial que eu construí. E sempre nessa busca das conexões, que estão muito no campo do imaginário e do coletivo, junto com outras pessoas que também buscam essa reconexão. Eu não sei em que geração minha família vem da África, em que momento, de que país, de qual grupo étnico. Tenha uma conexão com essa afro-brasilidade, mas pensando em uma reparação histórica.
Paty Wolff: Eu tenho dito que encaro como um livro que não é para os imigrantes. Mas para os outros, para ser usado como uma ferramenta de sensibilização sobre essa causa nas escolas, nas políticas públicas, abrindo um diálogo com as infâncias que estão se construindo sobre o mundo. O olhar sobre o deslocamento de pessoas é uma crise mundial. É um assunto contemporâneo e atual e necessário. Mesmo que a imigração haitiana tenha décadas no Brasil [desde 2010 os imigrantes haitianos se deslocam para o Brasil], ainda tem gente tentando mandar dinheiro pra lá ou trazer a família. É um deslocamento que se torna contínuo.
O livro celebra a memória. É uma história que fala como a migração traz consigo um território inteiro, sua cultura, seus gostos. E fala da resistência dessa memória.
(Texto: Naíma Saleh)
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