Na contramão dos comfort books, os livros que trazem aconchego, despertam boas lembranças, fazem sentir aquele quentinho no coração.... há a literatura que pode nos provocar grande desconforto, nos colocando de frente com aquilo que não queremos (ou não temos coragem) de olhar. São os chamados "temas fraturantes". Sexualidade, saúde mental, opressão de classe, luto – a lista é grande. (Veja livros que abordam temas fraturantes).
Temas fraturantes incomodam. Desassossegam. Nos tiram da nossa zona de conforto. Provocam. E conectam a literatura aos dilemas e questões sociais do mundo que habitamos. Não faltam exemplos de livros que podem ser citados.
Ilustração de O astronauta (Pequena Zahar, 2024), que abordao declínio da memória durante a velhice
Os livros O Jardim da minha Baba (Companhia das Letrinhas, 2024), de Jordan Scott e Sydney Smith, Bento, vento, tempo (Companhia das Letrinhas, 2024), de Stênio Gardel, e O astronauta (Pequena Zahar, 2024), de Carol Fedatto e Amma, se debruçam em torno de um tema comum e delicado: saúde mental na velhice. Já Almoço de família (Companhia das Letrinhas, 2023), de Janaina Tokitaka, e Princesa Kevin (Companhia das Letrinhas, 2020), de Michaël Escoffier, abordam sexualidade e gênero com naturalidade. E esses são apenas alguns exemplos.
Em Eu falo como um rio (Pequena Zahar, 2021), a questão das infâncias atípicas é retratada com delicadeza
A expressão foi cunhada pela professora e pesquisadora portuguesa Dra. Ana Margarida Ramos, da Universidade de Aveiro, no livro O que é qualidade em literatura infantil e juvenil?, para se referir à "abordagem de questões de cunho social e psicológico portugueses das quais, durante muito tempo, crianças e jovens leitores foram poupados", como expllica Diana Navas, Doutora em Letras pela Universidade de São Paulo (USP) e Mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP. Professora da Universidade de Aveiro, Ramos se debruça especificamente sobre livros e autores portugueses, mas seu ponto de vista joga luz sobre aspectos universais da leitura de assuntos sensíveis.
"A ausência de moralismos ou de preconceitos estimula o espírito crítico por parte dos leitores adolescentes que se deparam com inquietações e problemas reconhecíveis e se reveem nas palavras e atitudes das personagens, avaliando os comportamentos recriados, perspetivando, sob novos prismas, a sua relação com os outros e, em última análise, retirando ensinamentos para a sua própria vida”, Ana Margarida Ramos, em artigo publicado na Revista Literartes, da USP (2015)
"No cenário brasileiro, o termo é utilizado em publicações que passo a fazer em parceria com a pesquisadora (Ana Margarida) em 2015, abordando, inicialmente, as obras de Lygia Bojunga", conta Diana. Ela destaca no Brasil atual a questão dos gêneros e a da invisibilidade social como principais temas fraturantes. "Estamos diante dessas situações em nosso dia-a-dia, bastando olharmos para fora da janela de nossas casas ou, mesmo, se olharmos para dentro delas. Se, antes, as pessoas precisavam ver tais situações representadas em telenovelas ou filmes para terem “um primeiro contato” com tais situações, hoje, elas são parte de nossa realidade diária", explica.
LEIA MAIS: Livros que abordam temas fraturantes
A literatura que pode despertar empatia
"Por que tem gente que não tem casa?"
"O que é transfobia?"
"Por que pessoas matam outras pessoas?"
Muitas vezes, as crianças ficam sem resposta sobre diversos assuntos que os adultos preferem ignorar e que acabam sendo transmitidos aos pequenos sob uma tarja de "probido". Não se fala sobre.
Mas a importância de trazer esses temas para a literatura repousa justamente na possibilidades de quebrar tabus e despertar empatia. "A literatura se oferece como um dos raros espaços em que é possível – de modo simbólico – “vivenciar” situações sem que seja necessário, efetivamente, fisicamente estar submetidas a ela", explica Diana. Ela cita como exemplo a questão da representação de refugiados de uma guerra. "A literatura me permite compreender, sem que eu esteja submetido efetivamente a um conflito bélico, o que pensam, o que sentem as pessoas que estão ali envolvidas. Como nos ensina Compagnon, a literatura permite o que a vida real não possibilita: viver diversas vidas. E isso é muito importante para o desenvolvimento da alteridade, das relações de empatia e solidariedade e, consequentemente, para a formação de cidadãos no sentido mais amplo do termo", explica.
Sobretudo em temas fraturantes, o que a gente acaba vendo é uma ausência de mediação, o que não impede as crianças de seguirem absorvendo informações e construindo visões de mundo a partir de fragmentos brutos – e não mediados. (Pedro Markun, escritor)
Ilustração de Os pombos (Companhia das Letrinhas, 2023), de José Carlos Lollo e Blandina Franco
Os livros Os pombos (Companhia das Letrinhas, 2023) e Aporofobia (Companhia das Letrinhas, 2023) são de certa forma complementares e ressoam as ideias do pedagogo, ativista e padre Júlio Lancelotti, figura de referência na luta pelos direitos humanos de populações em situação de rua em São Paulo. Lancellotti assina a contracapa de ambos os livros. “Que este livro e sua emotiva história nos convide à mudança e a transformações. Pessoas em situação de rua com quem partilhei as imagens e os texto do livro logo disseram: ‘Somos nós’", diz Padre Júlio Lancelotti, no texto de apresentação de Os pombos, assinado por Blandina Franco e o ilustrador José Carlos Lollo. A dupla assina as duas obras que não só trazem para as crianças temas fraturantes, mas que nascem a partir da observação de uma realidade específica: a da experiência da pobreza em uma metrópole.
Em Os pombos, esses animais que tanta gente prefere não ver, mas que estão por toda parte nas cidades, são a metáfora para escancarar os olhares aos quais é submetida a população vulnerável - e os sentimentos de repulsa e rebaixamento tão próprios da exclusão social. Já em Aporofobia, que nasce de uma proposta informativa, o título já indica que as crianças tomarão contato com uma palavra provavelmente nova em seu universo, mas muito presente no dia a dia: a aporofobia, que se define como o ódio ou aversão a pessoas em situação de vulnerabildiade.
Em Aporofobia, os autores escancaram um preconceito velado, mas escancarado: aversão aos pobres.
LEIA MAIS: Blandina Franco e Lollo abordam preconceito ao pobre em dois livros
Arte e sociedade entrelaçados em temas fraturantes
Problematizar ou mesmo tematizar questões sociais é prerrogativa dos livros para crianças e jovens? Não. Como expressão artística, os livros se bastam. Porém, como parte de uma cultura comum, é natural que os livros se comportem também como mediadores de seus contextos, uma vez que são indissociáveis de seu tempo e das questões humanas que os envolvem. Como uma vez declarou o poeta Ezra Pound, “os artistas são a antena da raça”. Esse pensamento nos ajuda a não confundir possibilidade de mediação com mero utilitarismo, quando se trata de obras potencialmente formativas.
Em outras palavras, é bem-vindo que variadas possibilidades de literatura coexistam, se o objetivo é oferecer bibliodiversidade às crianças – tanto narrativas que se constituem como obras em aberto, sem vinculação a temas específicos, deixando aos leitores a tarefa de interpretá-los de variadas formas; quanto histórias que veiculam diretamente assuntos de relevância compartilhada em seu tempo, como emergência climática ou racismo estrutural, por exemplo. Nem todos esses assuntos serão necessariamente “fraturantes”, pois o contexto em que cada livro surge, com seus discursos e normas sociais, determina como ele será recebido e lido.
Quando olhamos para os clássicos da literatura infantil, fica fácil visualizar outro ponto fundamental dessa reflexão, pois as histórias para a infância têm uma característica particular: seus leitores vão crescendo e mudando ao longo do tempo. Onde vivem os monstros (Companhia das Letrinhas, 2023), de Maurice Sendak, – para usar um exemplo de uma das histórias que mais circulou na História dos livros para crianças – não tem hoje a mesma leitura que tinha nos anos 70, assim como um livro contemporâneo brasileiro, como Amoras (Companhia das Letrinhas, 2018), de Emicida e Aldo Fabrini, possivelmente não encontraria as mesmas possibilidades de criação e distribuição em outros períodos históricos ou em países diversos. A leitura dos “temas fraturantes” está intrinsecamente ligada à sua localização enquanto objeto cultural, social e histórico.
Outra questão importante para fugir do utilitarismo é garantir que as obras que abordam temas fraturantes tenham legítima relevância artística e social - e não sejam produzidas apenas para surfar em pautas atuais, se apropriando mecanicamente das pautas "vendáveis". "Esse é o ponto crucial, a meu ver. Muitos são os autores que têm produzido livros simplesmente para se valerem da relevância que tem sido dada a alguns temas, fazendo, isto, no entanto, de uma forma, muitas vezes, simplista e empobrecida", comenta Diana. Para ela, cabe aos mediadores de leitura e responsáveis conhecer a essência do texto literário para reconhecer a relevância artística e literária dos textos que serão introduzidos a crianças e jovens. Isso, é claro, não significa que todos precisam ser críticos literários, mas desenvolver a sensibilidade de perceber sua própria experiência enquanto leitor.
"Digo que o livro é bom quando provoca seus sentidos e reflexões. Se ele provocou o leitor adulto, não tenha dúvidas de que provocará também o leitor criança e vice-versa", Diana Navas
LEIA MAIS: Clássicos contemporâneos: quais são os livros que ficam para sempre?
Ao lado de uma turma potente de criadores de textos e imagens, o Coletivo Sabichinho, Pedro Markun é autor de uma série de livros com uma característica comum: são obras “para crianças” que foram construídas a partir de inquietações das próprias crianças. Em muitos casos, o que acontece é que essas histórias também caem no gosto dos adultos, que encontram acolhimento para suas próprias perguntas. “É nesse sentido que a gente, no Coletivo Sabichinho, decidiu trabalhar a criação de livros que abordem temas complexos. Esses livros, munidos do que chamamos de 'chaves de leitura', possibilitam que pais, professores e as próprias crianças construam e conduzam o pensamento por meio de perguntas norteadoras”, conta o escritor.
Mais do que trazer respostas prontas, a gente pretende abrir espaço para que esses diálogos aconteçam de maneira ativa, chamando atenção para o papel mediador da escola e da família. (Pedro Markun, escritor)
A lagarta é uma amiga muito querida e presente no dia a dia de todos os insetos do jardim. Mas a lagarta morreu, e agora seus amigos têm muitas perguntas. O que acontece quando a gente morre?
Temas fraturantes e o perigo da realidade sem mediação
O ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) é o documento que preconiza os direitos das infâncias e juventudes brasileiras, previstos na Constituição pelo artigo 227, que determina: crianças e adolescentes devem ser tratados pela sociedade e, em especial, pelo Poder Público, com prioridade absoluta pelas políticas públicas e ações do governo.
Assim, crianças e jovens são grupos sociais que constituem uma responsabilidade compartilhada, o que significa dizer, por exemplo, que cidadãos sem filhos também tem sua participação no zelo pelo bem-estar dos pequenos; ou que mazelas sociais como trabalho infantil ou gravidez precoce são de responsabilidade coletiva.
Do ponto de vista das crianças, chegamos em outros pontos dessa trama delicada. Na televisão, nos jornais e nas cenas captadas na rua, os problemas sociais se escancaram de diferentes maneiras, seja na observação das pessoas sem moradia, vivendo debaixo de viadutos e em praças públicas, ou pelo noticiário que presta contas da violência, da crise climática e da fome. Jovens e crianças pequenas, por mais que não demonstrem, estão atentas e expostas a essas realidades. Quando os adultos de referência escolhem não conversar sobre esses assuntos com seus filhos (ou com, sobrinhos, alunos, afilhados...) perdem a chance de expor visões de mundo e dar suporte a suas identidades em construção.
"Acredito que estamos vivenciando, neste momento, uma visão da criança como ser participante efetivo da construção de uma sociedade mais equilibrada, justa, igualitária. Uma criança que tem direitos e que precisa reconhecer também deveres para a vivência em sociedade. Neste sentido, a abordagem dos temas fraturantes vem ao encontro da formação desse indivíduo ciente e consciente das questões que fazem parte de seu contexto", pontua Diana.
Partindo de experiências reais, o livro Os pombos foi idealizado pelo padre Júlio Lancelotti, e escancara a maneira como as pessoas pobres são tratadas na sociedade.
Os temas fraturantes revelam fraturas coletivas que impactam o indivíduo – e por isso estão presentes tanto na literatura como em outras linguagens artísticas. “Falamos de livros aqui – que me parece uma mídia bastante potente para o desenvolvimento dessas mediações – mas poderia ser igualmente um bom filme, uma boa peça de teatro ou mesmo uma boa conversa na mesa de jantar”, explica Pedro Markun.
"O desafio, muitas vezes, é que os pais não se sentem prontos para conduzir essas conversas, em partes porque vários desses temas são fraturantes até mesmo para nós adultos", Pedro Markun
Para Diana, muitas vezes a falta de compreensão sobre a literatura e seu caráter simbólico faz com que temas fraturantes sejam tratados de forma distorcida. "Os responsáveis por crianças e jovens – e, infelizmente, mesmo muitos educadores – acabam por conceber tais obras como um discurso doutrinário, cujo intento seria “ensinar” ou “induzir” a criança ou o jovem a uma determinada prática. E isso é exatamente o oposto do que propõe uma obra literária", explica. Ela cita a questão do suicídio - uma pauta extremamente relevante de ser abordada nas escolas, uma vez que a taxa de jovens que tiram a própria vida cresceu 6% por ano no Brasil entre 2011 a 2022. "Completamente diferente do que supõem muitos adultos, uma obra que aborde esse tema não instiga a criança ou o jovem a se suicidar. Pelo contrário, incita este leitor em formação a compreender as razões que levam alguém a optar por esta prática, a colocar-se no lugar deste outro, e, desta forma, refletir e conscientizar-se sobre tais sentimentos e (re)organizá-los. Ainda que isso, muitas vezes, não ocorra de forma consciente", comenta.
Da criação à recepção: há espaço para a literatura do desconforto?
Do ponto de vista de quem cria, ou seja, de escritores, ilustradores e também de editores, muitas vezes não há dúvida sobre a relevância de temas considerados tabus ou incômodos nas histórias que as crianças leem. Porém, quando se fala de distribuição e circulação de uma obra, o caminho ganha curvas imprevistas, uma vez que esbarra em limites sociais.
Para Pedro Markun, enquanto professores se destacam por abordagens criativas de assuntos sensíveis, há obstáculos institucionais, políticos e burocráticos que dificultam sua livre circulação entre as crianças. Muitos utilizam A eleição dos bichos (Companhia das Letrinhas, 2018), disponível sob licença Creative Commons, para realizar experimentos de democracia em sala de aula. Isso mostra que, apesar das barreiras institucionais, há um interesse em levar esses debates às crianças”, conta o escritor.
Para Diana, a questão de gênero é a que mais desperta resistência em sala de aula. "Os responsáveis pelas crianças acreditam que tais leituras podem incitar a identificação de crianças com os gêneros não binários, o que, como sabemos, é algo infundado quando consideramos a essência artística e simbólica do literário", pontua. Um exemplo recente é o caso de censura do livro O avesso da pele (Companhia das Letras, 2020), de Jeferson Tenório,
Para Markun, há duas perspectivas principais na abordagem de temas fraturantes. "Na perspectiva individual, noto uma procura frequente e constante por discussões sobre temas como política, luto e privacidade digital. Do ponto de vista institucional, ainda existe uma resistência significativa. Tomando A eleição dos bichos, que aborda política, como exemplo, durante a gestão Bolsonaro, não houve adoção do livro por escolas nem compras governamentais. Muitas escolas e diretorias de ensino hesitam em se envolver nesses temas devido à polarização social”, relembra o autor, que atribui a resistência de abordagens democráticas no livro infantil ao impacto causado por movimentos como Escola Sem Partido", conta.
Pedro chama atenção ainda para um aspecto muitas vezes pouco percebido quando os adultos rejeitam obras de temáticas consideradas difíceis ou polêmicas: o fato de que a percepção sobre o que é ou não sensível dentro de uma história infantil é dos adultos, e não das crianças, que são as leitoras centrais desses livros. A esse respeito, é válido lembrar que, como Ana Margarida Ramos também defende, toda narrativa reflete algum ideal, já que um livro é parte de uma cultura e um tempo sociohistórico; a diferença é qual tipo de poderes institucionalizados e discursos normalizados ele reforça ou questiona, o que influencia diretamente por que algumas obras têm aderência social e podem circular livremente, e outras não.
“As crianças têm uma curiosidade ilimitada sobre o mundo, livre dos tabus que nós, adultos, frequentemente criamos. Se estivermos dispostos a ouvir vamos ver que elas fazem perguntas importantes o tempo todo. Cabe a nós decidir como respondê-las.”
(Texto: Renata Penzani)
LEIA MAIS: Para que serve a literatura?