Haicai: um poema feito para brincar

07/03/2024

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Talvez você tenha pensado que esses versos sejam de Paulo Leminski (1944–1989). Ou de Millôr Fernandes (1923–2012), ou de Mario Quintana (1906-1994), ou de Alice Ruiz S. O que todos esses escritores têm em comum é colecionarem em suas obras os haicais, um tipo de poesia de origem japonesa com versos curtos. Por meio de palavras simples, o haicai  tenta “fotografar” um momento do cotidiano capturando somente o essencial. Como define o poeta Alonso Alvarez - outro haicaista - o haicai "é um instante iluminado pela natureza que nos cerca — breve e leve, mas que revela que a vida pulsa".

Mas e se contarmos que o haicai acima na verdade foi feito pelas sapinhas Carla e Sônia do Clube do Pepezinho? Pois é. No quarto volume da série, O Clube do Pepezinho: colaborações (Companhia das Letrinhas, 2024), de Dav Pilkey, os 21 sapinhos vão finalmente apresentar as histórias em quadrinhos que produziram - que são “livros de verdade”. E a obra assinada pelas sapinhas Carla e Sônia une haicais, fotografias e shodōs, como são chamadas as caligrafias japonesas pintadas à mão.

Carla e Sônia se inspiram na natureza para criar seus haicais em O Clube do Pepezinho- Colaborações, de Dav Pilkey

Carla e Sônia não são as únicas a se aventurarem pelo haicai. Por séculos, haicaístas encaixam o máximo de detalhes com o mínimo de palavras possível em três versos carregados de profundidade. Dando origem a um tipo de poesia que aqui no Brasil se adaptou muito bem à nossa produção literária.

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A arte de fazer poesia com haicais

O momento presente. O cotidiano. A simplicidade. A natureza. Todos esses são grandes temas do haicai tradicional. E para estruturá-lo, é necessário seguir uma formatação específica. Pelas definições formais, o haicai é um poema de 17 sílabas poéticas (onji) distribuídas em três versos de 5/7/5 sílabas, sem rima ou título. Também faz parte do haicai o kigo, que sinaliza a estação do ano em que o haicai foi escrito, e é obrigatório nos haicais tradicionalistas. 

Embora esse seja o desenho padrão, há haicais que se desviam um pouco desse modelo. “Ter três linhas ainda é um critério muito forte e definidor. Todos os outros, em especial a contagem de sílabas e a referência à estação, são questionados”, comenta Edson Iura,editor da Caqui – Revista Brasileira de Haicai.

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As origens do haicai: do tanka ao haiku

Carla e Sônia em ilustração do Clube do Pepezinho - Colaborações

Carla e Sônia em ilustração do Clube do Pepezinho - Colaborações

A história de como o haicai nasceu começa por volta do século IX, no Japão. Inspirados pela poesia chinesa, os japoneses passaram a produzir o tanka, um poema de cinco versos, dividido em duas estrofes - a  primeira com três versos e a segunda, com dois. No início, o tanka era escrito por um único autor. Mas começaram a ser acrescentadas novas estrofes, atribuindo a autoria dos poemas a mais pessoas, até que a tanka se tornou um tipo de poesia colaborativa chamada renga. Mais tarde, a renga se popularizou em um jogo de escrita informal com tom humorístico chamado renku, ou haikai-renga.

Um grande praticante da renga foi Matsuo Bashô (1644–1694), considerado o maior poeta japonês do século XVII e primeiro mestre haicaísta. Bashô nomeou a primeira estrofe da renga, responsável pelo tom do poema, de hokku. E batizou de haikai (ou no termo abrasileirado, haicai) as “poesia-resposta” que viriam a seguir. Bashô foi o primeiro a trabalhar com o hokku separado da renga, criando assim o haikai, que por definição é um poema de três linhas independente, simples em forma e conteúdo, que incorpora características da natureza. A ideia do haicai é descrever - sem exagero - uma cena tão bem quanto uma fotografia faria.

Poetas que vieram depois de Bashô, como os mestres Yosa Buson (1716–1789) e Kobayashi Issa (1763–1827), também se destacaram na produção do hokku independente que, apesar da popularidade, só foi rebatizado de haicai no século XIX.

Foi Masaoka Shiki (1867–1902), quarto mestre do haicai japonês, o responsável pela renomeação desse tipo de poema. Diferente do hokku descritivo de Bashô, Shiki acreditava em um tom mais informal, em uma poesia que deveria ser como um quadro pintado ao ar livre: não apenas um momento descrito, mas um momento compartilhado. Assim nasce oficialmente o haiku, resultado da junção dos termos haikai e hokku. O haiku é um  poema japonês de 17 sílabas, dividido em três versos de 5/7/5 sílabas - e foi o primeiro tipo de poesia japonesa a chegar ao Brasil, como você vai ver mais adiante.


Os haikus japoneses não são escritos em versos horizontais, como no Brasil, mas na vertical. Até a direção da leitura é diferente: se aqui estamos acostumados a ler de cima para baixo e da esquerda para a direita, no Japão também se lê de cima para baixo, só que da direita para a esquerda.


Haicai, haiku... Afinal, é tudo a mesma coisa?

Segundo Edson Iura, editor da Caqui, haicai e haiku são equivalentes quando se considera a prática poética no Brasil. O porquê da existência desses termos tem mais relação com o caminho das palavras, a etimologia, e como as obras se desdobram em outras com o passar do tempo.

O termo original haikai (com "k") é composto por dois caracteres, os kanji “俳” (“hai”), que significa “brincadeira”, e “諧” (“kai”), “harmonia”. Ou seja, uma brincadeira harmoniosa. “É uma definição tão boa quanto qualquer outra pois é difícil rastrear a origem de uma palavra tão antiga”, ressalta Iura. Ele aponta, no entanto, que o termo já existia bem antes de chegar ao Japão. “ A palavra haikai tem origem na língua chinesa e quer dizer ‘cômico’. Era inicialmente usada no Japão para qualificar práticas poéticas heterodoxas, feitas sem compromisso com uma rígida tradição poética, apenas por brincadeira”.

haiku é composto também por dois caracteres, os kanji “俳” (“hai”), e “句” (“ku”). O último significa “estrofe” ou “verso” - ou seja, uma estrofe cômica. Hoje, no Japão, o termo haiku é utilizado para o poema de três versos enquanto haicai remete simplesmente a toda poesia de estilo cômico – haiku incluso. 

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Mas como o haicai chegou ao Brasil?

Segundo o artigo O Haicai no Brasil, de Paulo Franchetti, só depois da segunda metade do século XIX é que a literatura japonesa chegou ao Ocidente – e primeiro à Europa – por meio de livros de viagem. Mas foi apenas no início do século XX que o haicai apareceu pela primeira vez no Brasil, com a chegada de imigrantes japoneses nestas bandas.

Débora Tavares, mestra em Língua, Literatura e Cultura Japonesa pela Universidade de São Paulo (USP), explica que  o  haiku foi introduzido no Brasil pelos primeiros imigrantes japoneses em 1908. “Hidekazu Masuda (1911-2008), conhecido como Masuda Goga, realizou um trabalho importante de escrita do haiku em língua portuguesa, hoje conhecido como haicai. Esse haicai considerado ‘tradicional’ é praticado em diversas cidades do Brasil por grupos de haijin (poeta que compõe haicai) que seguem em suas composições o formato proposto por Masuda Goga”, explica a pesquisadora.

Tavares também aponta para uma segunda rota do haicai no Brasil, vindo diretamente da Europa: “o haiku também chegou ao Brasil no início do século XX por meio de traduções francesas e inglesas. Hoje, a composição de haicai se faz presente nas diversas regiões do país e atrai cada vez mais simpatizantes”. 

Para a pesquisadora, o haicai tem uma parte importante na construção da literatura nacional. Entre os mais famosos haicaístas do Brasil estão Alice Ruiz S, Millôr Fernandes e Paulo Leminski. O último, aliás, tão admirador do japonês Matsuo Bashô, que chegou a escrever a biografia do mestre haicaísta, publicada hoje em volume único junto a três outras biografias de autoria de Leminski.

Quanto à presença cada vez maior de haicais e haicaístas no Brasil, Neide Hissae Nagae, professora sênior do Departamento de Letras Orientais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (FFLCH – USP), destaca o interesse internacional pelos haicais “à brasileira”. “Hoje em dia, vejo o haicai ocupando um espaço muito grande na literatura brasileira, com vários grupos, encontros, publicações e concursos. Algo que chama a atenção dos japoneses, e que tem sido alvo de pesquisas financiadas inclusive pelo governo japonês, para temáticas abrangendo o haicai produzido por brasileiros em português e o haiku produzido pelos nipo-brasileiros em língua japonesa. Sua relevância também está em apresentar uma forma poética diferente que não se desenvolveu, mas se aclimatou muito bem no Brasil”, comenta.

E o haicai para as crianças?

Muitos autores infantis, como Nelson Cruz, Leo Cunha e Alvaro Posselt já produziram haicais para crianças. E na escola, esse tipo de poema pode ser trabalhado entre os  anos iniciais e finais do Ensino Fundamental. A professora Neide Nagae aconselha os professores a abordarem o conteúdo com criatividade e, de preferência, em espaços fora da sala de aula. “No Japão, esse exercício é feito no espaço externo da sala de aula, e até dentro da escola, onde há vegetação. Compõe-se a partir da observação da flora e da fauna de seu espaço. Como diz Goga, a natureza é o berço do haicai”, completa em citação a Débora Tavares, que durante o período de sua pesquisa concluiu que o ambiente externo é o ponto de partida para a composição do haicai.

Hoje,no Brasil, além de comporem haicais na escola, muitas crianças participam de concursos nacionais e internacionais, uma prática que, como aponta Neide, estimula não somente a escrita, mas a leitura dos poemas, além de desenvolver outras aptidões que a apreciação da natureza possibilita. 

Mais do que isso, a leitura e composição de haicais na infância estimula a imaginação, a sensibilidade, o entendimento de si e do mundo ao seu redor, estimulando a observação das transformações. “O papel do haicai é encantar cotidianamente ou registrar o encantamento cotidiano quase que como em uma fotografia. Na literatura para crianças, pode ser um momento de pausa, de repouso, de um breve e certeiro olhar para a natureza que está ao nosso redor e que muitas vezes passa desapercebida, mas também de descobertas e de mudanças do olhar”, enfatiza a professora Neide. 

Afinal, crescer é um pouco como reler um haicai: num instante, tudo se transforma.

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