Por Roberta Asse
Vivemos um momento de ebulição de ideias e experimentações sobre as diversas personalidades do livro ilustrado contemporâneo, em dinâmica transformação a partir do diálogo com os contextos que o provocam para existir. As investigações por pesquisadores de diversas áreas do conhecimento têm percebido esse objeto plurissignificante como capaz de provocar e encantar leitores de todas as idades, e também e inclusive leitores bebês, por meio da prática de linguagens peculiares, inovadoras e por descobrir.
Ilustração de Cra-crá de tucano (Brinque-Book, 2023), de Roberta Asse
A oferta de livros para a primeira infância cresceu de maneira importante nos últimos anos, impulsionada pela presença crescente e impactante dos bebês na escola, ou creche, a partir dos três meses de idade, durante períodos longos e coincidentes com as jornadas de trabalho das famílias, gerando um movimento de formação de profissionais e oferta de produtos para atender as demandas geradas por esse cenário. O fenômeno de tantas publicações do gênero está ligado também ao aprofundamento e difusão dos estudos teóricos sobre as infâncias, onde a leitura é percebida como atividade de criação de benefícios amplos na educação das crianças, ao dar conta de espectros que passam pelo cognitivo e afetivo, e contribuir para o arranjo de momentos de convívio intensos entre bebês e adultos, através da ludicidade e jogos simbólicos.
“É todo um mundo constituído por uma grande variedade de produtos, desde os chamados livros-brinquedo, livros de plástico, livros de encaixes, livros com sons, pop-ups, com as bordas redondas mais simples etc. Os livros de imagens e a predisposição de compartilhamento que ele propicia entre o adulto e a criança. Todos carregados de estímulos para despertar os sentidos e a atenção dos bebês, para distraí-los, para apresentar diferentes mundos, sejam estes o das cores, dos animais, dos brinquedos. Este mercado se abre e se amplia de acordo com o interesse cada vez maior na primeira infância.” (PRADES, 2012).
Para além do ambiente escolar, pais e educadores têm aderido à leitura literária como ferramenta para uma formação integral, e esta ideia torna-se cada vez mais forte entre as famílias. Um dado interessante deste movimento é o crescimento dos clubes de assinatura de livros infantis, que já ultrapassou a marca de 100 mil famílias assinantes em apenas um dos serviços oferecidos no mercado. Dados de 2018 já registravam 1,5 milhão de livros distribuídos em 5,1 mil cidades brasileiras (Imprensa Mercado & Consumo, 2018). Esses números tem parecido sinalizar uma preferência do público pelos clubes em relação aos demais canais de vendas de livros, e esta preferência tem sido atribuída ao diferencial da curadoria, ou seja, a orientação para os pais de que livros são adequados por idade e as demandas de cada fase de vida e aprendizado.
Esta relação etária com a literatura é muito questionada e deve ser assunto a aprofundar. Para o recorte deste artigo e para a busca por proposições de projeto que ampliem e enriqueçam a experiência leitora, podemos tomar como horizonte a concepção bem descrita pelo autor colombiano Evélio Cabrejo-Parra, em entrevista a Gabriela Romeu em 2014: “A importância da leitura na primeira infância não deve responder unicamente à angústia escolar que sentem todos os pais: se as crianças vão aprender a ler, se elas vão ter mais facilidade na hora de estudar ou não. (...) A leitura na primeira infância deve estar direcionada, eu diria mesmo, colocada, entre as competências naturais da criança.
A criança não é uma “tábua rasa”, como se dizia antes. Chega ao mundo com muitas competências, competências essas, sem dúvida, discretas, que você tem que observar para localizá-las (...) Não se trata de querer garantir um futuro intelectual. Os bebês têm necessidades psíquicas que devemos alimentar (...) Essa é a função da leitura na primeira infância. (...) a linguagem é uma maneira interessante de começar, porque um bebê chega ao mundo com uma capacidade de percepção auditiva muito, muito desenvolvida. (...) A leitura entra nessa direção em contraposição à fala cotidiana. Temos que dar ao bebê a possibilidade de escutar diversas músicas da língua.” (CABREJO-PARRA, 2014).
Ao marcar a importância dos reconhecimentos e práticas da linguagem a partir do livro, Cabrejo-Parra infere sobre a presença ativa do adulto nos momentos de leitura com os bebês. Esta seja talvez a dimensão mais estudada até agora sobre a literatura para a primeira infância, e tem sido protagonizada principalmente por profissionais das áreas da psicologia, em uma vertente de aproximação e formação de laços afetivos entre cuidadores e crianças. “Um pai, um filho e um livro, os três entrelaçados numa só história.” Esse é um intenso triângulo amoroso na primeira infância, segundo a escritora colombiana Yolanda Reyes. Pesquisadora das relações entre leitura e primeira infância desde os anos 1980, Yolanda fundou o Instituto Espantapájaros, um espaço literário para a infância em Bogotá, a “casa imaginária” construída com o cimento simbólico da literatura. Ali, numa “bebeteca”, crianças bem pequenas leem ao ouvir a voz de seus pais, leem ao morder os livros, leem ao folhear suas páginas.” (ROMEU, 2012).
Yolanda Reis tem sido uma das autoras mais referenciadas no assunto, a partir da publicação de seu livro A Casa Imaginária. Leitura e Literatura na Primeira Infância (Global Editora, 2010). “A literatura oferece material simbólico inicial para que a criança comece a descobrir não apenas quem é, mas também quem quer e pode ser”. (REYES, 2010). Os conteúdos abordados por Yolanda são em grande parte frutos da experiência no Instituto Espantapájaros, e assim tem sido com outros profissionais atuantes na prática destas leituras. É natural que seja assim, considerando que o tema é relativamente novo, está em curso de aprendizados, e trabalha sob a tenda de algumas visões contemporâneas sobre o conhecimento, onde a participação, observação e escuta atenta e constante do leitor faz parte do processo e o legitima, ao representá-lo e às suas necessidades e expectativas. Neste sentido, o repertório teórico que temos hoje e que pode ser fonte de dados para a elaboração de novos projetos, está baseado na experimentação. No Brasil, temos iniciativas com naturezas parecidas com o trabalho de Yolanda, como o projeto Literatura de Berço, dirigido pela psicóloga Cássia Bittens, que já realizou encontros de leitura na cidade de São Paulo, com a participação de mais de 500 famílias.
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Identidade de livros, livros identitários
As recolhas acima podem ser provocadoras da pergunta que motiva criadores e leitores atentos: que identidades podemos reconhecer e experimentar em livros para bebês?
Os livros que costumam provocar conexões com crianças bem pequenas, principalmente entre zero e três anos, são livros que chamamos de objeto, pois trazem características de suporte, formatos e outras características de projeto gráfico que consideram diversidade de leitores e leituras possíveis e trazem relações estreitas entre a forma e os conteúdos, entre a sintaxe e a semântica do livro. Esse atributo é fundamental, já que leituras pelos bebês sempre envolvem relações do objeto com o corpo e com todos os sentidos, como experimentar com a boca, com as mãos, os pés, abrir, fechar, debruçar-se inteiro sobre as páginas, apoiar para ver na vertical, testar possibilidades de resistência e movimentos livres.
Para que nós, adultos, como criadores e leitores de histórias dentro e fora dos livros, possamos abranger uma maior diversidade de vínculos que o livro contemporâneo pode despertar, é necessário conhecer mais das crianças e suas culturas infantis. Deste aprendizado sem fim, onde o ponto de vista infantil é sempre considerado, têm nascido a criação e o fazer de linguagens cujos códigos possam ser experimentados por todas as crianças, a partir de sua natureza humana e geracional, independente da idade e demais recortes classificatórios. Linguagens descendentes da memória sensorial, da expressão pelo gesto e pela voz, do jogo simbólico.
Logo que o bebê se apropria do livro e faz dele seu objeto, começa a procurar, além deste contato físico, sensorial e estético, compreender: o começo, o final, a ordem das páginas, o direito e o avesso, as ilustrações e os personagens representados, as letras, suas organizações e repetições… O bebê rapidamente entende que as palavras do livro “contam o mundo”. (LEITE, 2014)
A observação dos livros para bebês publicados nos últimos anos indica, além dos livros tradicionais em papel offset e couché, variações de um formato padrão que tem boa aceitação e, do ponto de vista da forma, se mostra bastante adequado. Trata-se do livro cartonado, composto por lâminas de papel paraná ou horlie empastados por papel couché ou offset laminados. Encadernação layflat, cantos arredondados, não machucam, são resistentes à água, ao rasgo e desmonte. Com 12 a 20 páginas, formatos variando em torno do 15 x 15 cm, adaptam-se às mãos do bebê e ao curto tempo esperado de atenção e manipulação do livro.
Ilustração de Eu grande, você pequenininho (Companhia das Letrinhas, 2015)
As especificações aqui descritas são resultado de um projeto de produção aprimorado pela indústria gráfica chinesa para atender ao mercado nacional e internacional. Entre as variações encontradas a partir do livro cartonado, é indispensável citar os livros com recursos táteis, os livros para banho e aqueles para a hora de dormir. A grande maioria também produzidos na China e seguindo o mesmo processo produtivo, apresentam inserções de papéis ou mantas texturizadas, representando seres ou objetos nomeados no livro. No caso do banho, normalmente trata-se de um livro plástico impresso, com folha dupla “recheado” de manta acrílica, assim como o de dormir, que ao invés do plástico utiliza tecido com impressão. O design corresponde ao imaginário da experiência sensorial que o bebê pode vivenciar no contato com estes livros e abriga, na escolha e aplicação dos materiais, atributos como aconchego, no caso dos livros de tecido, e associações temáticas, no caso dos texturizados. Neste ponto vale levantar a questão: são livros ou brinquedos? Denise Guilherme, idealizadora d'A Taba, em seu artigo Leitura para bebês, traz uma resposta relevante: “Várias dessas obras cheias de aparatos para entretenimento não possuem narrativas de qualidade e pouca preocupação estética ou literária. São apenas objetos com o formato de livros e atendem à uma demanda de um mercado em constante crescimento: o dos produtos para bebês.”
A visão de Denise diz respeito à qualidade dos conteúdos oferecidos nos livros, e confirma-se diante da maioria dos exemplares disponíveis hoje. Neste universo, muito se discute sobre os limites que podem caracterizar ou descaracterizar o objeto como livro. As respostas que os livros ilustrados contemporâneos mais celebrados têm trazido, acionam uma equação que integra jogo e narrativa em torno de um tema, como inspira o teórico Johan Huizinga, em seu livro Homo Ludens: “Chegamos, assim, à primeira das características fundamentais do jogo: o fato de ser livre, de ser ele próprio liberdade. Uma segunda característica, intimamente ligada à primeira, é que o jogo não é vida “corrente” nem vida “real”. Pelo contrário, trata-se de uma evasão da vida “real” para uma esfera temporária de atividade com orientação própria.” (HUIZINGA, pág. 10, 1938)
A sugestão da integração livro e jogo mostra-se capaz de proporcionar desdobramentos dinâmicos para a experiência leitora, ao aproximarmos relações entre os comportamentos como os descritos no livro A pequena história dos bebês e dos livros (2013), criado a partir de conversas com Evélio Cabrejoe Marie Bonnafé para o Seminário “ Conversas ao Pé de página”, realizado em 2013, em São Paulo: “com os livros, a criança pode brincar de ter medo, de se separar, de detestar, de se opor, de ser invencível e corajosa (...) quando lemos uma história, o bebê lê com seu corpo, e se movimenta.” (CABREJO, pág.17, 2014)
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O ler e o brincar universais e a mágica do poder
Ilustração de Crá-crá de tucano (Brinque-Book 2023), de Roberta Asse
Os marcadores pontuados até aqui indicam caminhos inovadores e desdobráveis das propostas de livros para bebês que temos lido, e outros que ainda precisam existir para engrandecer a multiplicidade de leituras que somos capazes de praticar. A ludicidade e o evocar de sensações de afeto podem ser duas primeiras diretrizes para projetos que conversam com leitores que ainda não falam, – da maneira como falam os leitores mais velhos – mas expressam e recepcionam mensagens com toda sua força vital e anímica.
Moram no brincar e no afeto histórias a serem construídas e transformadas pelos leitores bebês e por seus adultos leitores, cada uma das repetidas vezes que ela é lida e revivida. Ora pelo reconhecimento, ora pelo estranhamento, pelo cansaço ou pela euforia. Cada momento com o livro tem sempre algo novo a dizer.
O sapo Bocarrão (Companhia das Letrinhas, 1996) pode não assustar o bebê que lê no colo do adulto leitor, aconchegado e protegido, e até provocar vontade de passar o dedinho na sua língua gigante. Enquanto que o mesmo Sapo Bocarrão pode desencadear corridas e gritos de susto em leitores soltos pelo espaço de leitura, que no final vão querer rolar no chão de alívio ou risadas quando o sapo diz que tem uma boca pequenininha e os leitores descobrem que é mentira.
E quem não vai se surpreender se a leitura de Eu grande, você pequenininho (Companhia das Letrinhas, 2015) causar um silêncio no bebê leitor, talvez porque ele esteja se lembrando de sensações parecidas que já tenha vivido com seus adultos. Ou esse mesmo bebê vai balbuciar muitas palavras incompreensíveis, contando ao adulto leitor sobre suas memórias ou, quem sabe, inventando novas, inspiradas pela delicadeza e amor que emanam do livro.
Também pode acontecer de um leitor bebê, aconchegado no colo entre o peito e o livro abertos, querer antecipar a leitura das onomatopeias atribuída a cada bicho no Crá-crá de tucano (Brinque-book, 2023), gostando de repetir o som e a sensação de quando leu com seu adulto pela primeira vez e testou na própria voz a diversidade sonora que o livro propõe. Outro bebê, virando as páginas com autonomia, pode querer ele mesmo contar a história, acompanhando o movimento dos personagens pelas páginas, fazendo sons só quando vê os filhotes, com quem ele pode sentir-se identificado.
Quem vai descobrir primeiro que o Livro Clap (Companhia das Letrinhas, 2017) se anima pelo abrir e fechar de páginas, você ou seu bebê? Em Da pequena toupeira que queria saber quem tinha feito cocô na cabeça dela (Companhia das Letrinhas, 1994), vocês vão descobrir logo e juntos que a toupeira não vai desistir enquanto não descobrir quem fez cocô na cabeça dela. Com esses e outros livros muitos, você pode perceber as possibilidades intermináveis da
leitura do livro ilustrado contemporâneo. E, se ficar cansado de ler, basta brincar com seu bebê sobre coisas dos livros que agora pertencem a vocês dois, além dos muitos mais leitores.
O encontro de linguagens como estas, que envolvem diversos recursos sensoriais e cognitivos no entendimento ou absorção de uma ideia ou experiência, pode acontecer, como já dito, no fazer artístico de autores que estejam em diálogo com o aprendizado constante sobre as infâncias. Essa reflexão traz a perspectiva da formação de leitores, tema profundo e tentacular, objeto de estudos ricos que valem ser lidos e abordados. Para essa conversa aqui, cabe a proposição de que o livro ilustrado contemporâneo, com suas características de multisignificados, quando alinhado com a visão de que leitores crianças são apropriados de suas culturas infantis – e portanto co-criadores em sua percepção leitora – pode nos levar além da formação de leitores.
Discursos que fundamentam a formação de leitores (...) supõem que é por meio da leitura que se dará uma transformação das pessoas. Implícita ou explicitamente, esperam que, ao serem formados como tais, os leitores ampliem ou modifiquem sua capacidade para estabelecer relações com eles mesmos e com outras pessoas e instituições, e, portanto, ainda que de maneira colateral, ajudem a transformar (ou a manter) o entorno social. (GOLDIN, 2006, p. 126)
Estes livros podem contribuir na construção de cidadãos e seres humanos experenciados em dimensões diversas do pensar e sentir, através da imaginação, e portanto capazes de decisões mais ampliadas e empáticas. Há de se considerar, entre esses contextos, que a literatura pode ser instrumento
de poder para as crianças, de vivências e percepções do real através da imaginação e da experiência leitora ativadas pelas linguagens que conseguimos criar em um livro.
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Roberta Asse nasceu em São Paulo em 1971. Se formou em arquitetura pela FAU-USP, é designer gráfica, autora e ilustradora de livros, assim como pesquisadora de desenvolvimento infantil. Nas palavras dela, suas pesquisas envolvem "escuta de crianças e adultos, viagens a campo, vivências cotidianas ressignificadas e também os estudos acadêmicos. Tudo misturado e em dinâmica criação e recriação de expansões." Pela Brinque-Book, publicou Crá-crá de tucano em 2023.
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