Heróis da vida real: por que apresentar biografias às crianças

19/08/2024

Imagine um enredo em que centenas de crianças são presas, maltratadas e correm o risco de serem mortas por pessoas cruéis.

Quem poderá defendê-las? Existirá um herói capaz de salvá-las?

Ilustração de Nicky e Vera (Companhia das Letrinhas, 2023)

A história real de Nicholas Winton é contada em Nicky e Vera (Companhia das Letrinhas, 2023), que 

Existiu, sim. Um jovem inglês chamado Nicholas Winton, que salvou 669 crianças dos campos de concentração antes da eclosão da Segunda Guerra Mundial. Parece o enredo de uma história em quadrinhos ou de um livro de ficção, mas estamos falando de uma história real. A incrível saga de Nicholas é contada em Nicky e Vera (Companhia das Letrinhas, 2023), de Peter Sís, que apresenta às crianças um herói de carne e osso, que não tinha poderes sobrenaturais, mas foi capaz de usar sua sagacidade e sua coragem para mudar o destino de muitas crianças. Essa história inspiradora ganhou até uma versão para o cinema, com Anthony Hopkins interpretando Nicholas em Uma vida (2024).

Nicky e Vera, Peter Sís

Nicky e Vera, Peter Sis (Companhia das Letrinhas)

Assim como Nicholas, há vários outros exemplos de heróis e heroínas que na verdade são pessoas comuns. Não têm visão de raio-x, não ficam invisíveis nem possuem uma força sobrenatural. Mas, mesmo assim, são capazes de fazer o bem e, à sua maneira, tornar o mundo um lugar melhor. É o caso de Malala Yousafzai, a ativista paquistanesa que foi também a pessoa mais nova a ser laureada com um prêmio Nobel. Meu nome é Malala (Companhia das Letrinhas, 2024), escrito por ela mesma, ganhou uma versão cartonada para que os leitores menorzinhos saibam mais sobre quem foi a menina forte e corajosa que lutou pelo direito de ir à escola para ela mesma e para todas as outras garotas de seu país – já que as meninas não tinham permissão para isso no Paquistão. 

E podemios citar muitos exemplos mais. Nina Simone e Dona Ivone Lara são mulheres que marcaram a música e desafiaram estereótipos, conquistando terreno para que tantas outras artistas pudessem brilhar.  Nelson Mandela, Rosa Parks e Martin Luther King são até hoje figuras emblemáticas na luta pela igualdade étnico-racial simbolizando a importância de lutar por direitos e diginidade. Mesmo jovem, Greta Thunberg é talvez a figura mais conhecida na construção de um planeta mais sustentável, que assegure um futuro a todos nós.

O que todas essas pessoas têm em comum é que elas foram capazes de gerar impactos reais e de inspirar novas possibilidades de ser, de contribuir e de imaginar um mundo diferente. Especialmente para as crianças, conhecer essas histórias pode ser ainda mais significativo.

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E por que é tão importante apresentar heróis e heroínas reais às crianças?

Ilustração de 'Meu nome é Malala'

Malala se tornou um nome proeminente no cenário da educação e também na luta pelos direitos das mulheres 

 

“Desde cedo, o público infantil toma contato com heróis fictícios que, muitas vezes, iniciam sua jornada fracos e vão evoluindo ao longo da narrativa, até alcançarem seus objetivos, seguindo uma estrutura de contos de fadas”, diz a professora Lígia R M C Menna, docente do Curso de Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM-SP) e doutora em Letras com Pós-doutorado na área de Literatura Infantil. Segundo ela, é um tipo de narrativa que agrada às crianças, porque elas acabam se identificando com esses personagens. 

Porém, quando falamos de histórias reais, podemos oferecer às crianças um repertório muito mais amplo em se tratando de diversidade e também muito mais próximo do mundo delas. “Apresentar biografias para crianças, com personagens reais, torna-se muito significativo, principalmente se pensarmos na questão da representatividade”, aponta Lígia. Segundo a especialista, conhecer pessoas reais, como Malala, Nina Simone, Carolina Maria de Jesus, entre outros, é importante para a formação dos pequenos leitores, que verão em histórias reais como pessoas de diferentes gêneros e etnias enfrentam desafios e lutam para superá-los. São histórias que mostram que as transformações são possíveis – e que elas também podem mudar a sua casa, a sua escola, a sua cidade, o seu planeta. Ou seja, são histórias que saem de um mundo de fantasia e que se concretizam em cenários possíveis, em situações com as quais as crianças podem se familiarizar.

“Essas histórias podem inspirar os pequenos, enquanto veem que no mundo real também há pessoas extraordinárias e resilientes, que foram capazes de contribuir significativamente para um mundo melhor”, aponta a professora. Ela lembra, no entanto, que, em geral, as biografias mostram detalhes das trajetórias que são importantes para os humanos e que nem sempre são uma preocupação para os super-heróis fictícios. “Na vida real, para alcançar seus objetivos, vencer sozinho é muito complicado”, ressalta. “É preciso de colaboração”, acrescenta.

Além disso, em vez de acontecerem em um passe de mágica, as mudanças podem exigir resistência e persistência, já que, antes de dar certo, os planos podem dar muito errado. Ou seja, paciência é uma virtude elementar para os heróis de carne e osso, porque mudar o mundo pode levar tempo. Bastante tempo. Tanto, que não é incomum que esses propulsores das transformações nem vivam o suficiente para testemunhar os efeitos de suas ações.  

Contar histórias reais dá trabalho

Se criar uma boa história, sem compromisso com a realidade, protagonizada por personagens fictícios, exige muito da criatividade, do talento e da imaginação dos autores e ilustradores, quando falamos em biografias, há vários elementos que fazem a diferença na produção da obra. Ao escolher uma história que aconteceu, é preciso muita pesquisa, muito estudo, entrevistas, análises de registros históricos... “O autor precisa pesquisar, buscar fontes oficiais, entrevistar pessoas - ou mesmo encontrar uma boa biografia, em que todo esse trabalho foi feito, e adaptá-la para o público infantil”, diz a professora. 

Se é para relatar algo que, de fato, aconteceu, é importante ser fiel à realidade – ainda que toda história tenha um pouco do olhar de quem a escreve. “A biografia, em primeira instância, seria um gênero construído com fatos e informações possíveis de serem verificadas. Mas tem se tornado opinativo, ou seja, escritor apresenta juízos de valor, suas opiniões, com as quais inclusive podemos concordar”, aponta Lígia. “Os adjetivos marcam muito a opinião das pessoas. Por exemplo, dizer que as personagens biografadas são ‘extraordinárias’, ‘valentes’, ‘rebeldes', já é algo que apresenta uma opinião". Na opinião de Lígia, "as biografias se tornaram gêneros híbridos e opinativos”. É um problema? Não. Mas vale ter esse fato em conta na hora de apresentar esse gênero a crianças e jovens.

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Em outras palavras, é importante lembrar que as biografias - ainda que apresentem personagens reais - também são histórias contadas por alguém. Esse dado  é importante para a formação do leitor, já que, de acordo com a especialista, é essencial que a criança ou o adolescente aprenda a distinguir o que é fato e o que é opinião do autor. “Esse aprendizado é um processo e deve começar desde cedo”, afirma. É desta forma, segundo ela, que esse jovem aprende a também exprimir suas opiniões, concordar, discordar, criar seu senso crítico. 

Como escolher biografias para as crianças?

Além de observar a qualidade do texto e das fontes, o mais importante é selecionar uma história que desperte o interesse e a curiosidade da criança – o que, em geral, está ligado à maneira como aquele personagem e seus feitos são apresentados, a linguagem acessível, a narrativa, as ilustrações e fotos. “A biografia para o público infantil é um gênero com suas especificidades, um livro brincante e informativo ao mesmo tempo”, explica a professora.

Ilsutração de 'Nicky e Vera'

Quando percebeu que a guerra se aproximava, Nicholas percebeu que precisava agir - ilustração de Nicky e Vera (Companhia das Letrinhas, 2023)

“O escritor, o editor, o designer, o ilustrador trabalham em conjunto, porque a produção de um livro é um trabalho colaborativo, feito a muitas mãos. Assim cria-se um livro que seja informativo, fiel aos fatos, com muita pesquisa e verificação, e ao mesmo tempo que seja lúdico, atrativo e que também abra espaço para o ficcional, para o poético – deixando claro quando isso acontece”, completa. 

Para os mais velhos, biografias também são uma oportunidade de apresentar contextos históricos e realidades distantes, ampliando horizontes e construindo repertório. Além de serem também uma provocação que pode inspirar a busca de soluções para problemas reais, que façam parte da conjuntura em que essa criança ou jovem está inserido. Sempre é possível fazer a diferença, afetando a vida de algumas pessoas ou de várias.

Por qual herói da vida real você prefere começar?

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