Representatividade: Ana Clara Moniz e o desejo de ver as histórias de Pessoas com Deficiência (PcD) serem contadas

05/09/2024

Contar histórias de outras Pessoas com Deficiência (PcD) para que as crianças aprendam não só que essas pessoas existem, mas para que contem as histórias delas. Essa foi a inspiração da jornalista e influenciadora Ana Clara Moniz para o livro ABPcD: Letras, vidas e infâncias de pessoas com deficiência (Companhia das Letrinhas, 2024), escrito em parceria com a  jornalista, editora e tradutora Lígia Azevedo.

Ana Clara Moniz: jornalista, influenciadora e autora

Ana Clara Moniz: jornalista, influenciadora e autora

Primeiro livro publicado da Ana Clara, a obra reúne 26 personalidades - com nomes que começam com letras de A a Z - em curtos textos biográficos que recontam episódios de suas infâncias. As hsitórias são ilustradas por Bruna Assis Brasil. Apesar de serem muito diferentes - nas origens, nas ocupações, nas trajetórias - os personagens retratados têm pelo menos dois pontos em comuns: todos têm algum tipo de deficiência - visível ou não - e todos “fizeram alguma coisa muito legal”, como define a própria Ana Clara.  

A falta de representatividade, de poder ver outras pessoas com deficiência ocupando espaços importantes, e de poder encontrar, no dia a dia, experiências próximas às suas, deixou um vazio na infância de Ana Clara. Um espaço, mais tarde, ocupado pelo desejo de se tornar ela mesma uma referência para outras pessoas com deficiência e de poder contar as histórias delas. 

Capa de ABPcD: Letras, infâncias e vidas de pessoas com deficiência

Capa de ABPcD: Letras, infâncias e vidas de pessoas com deficiência  (Companhia das Letras, 2024), primeiro livro de Ana Clara Moniz


 Quando tinha apenas um ano de idade, ela foi diagnosticada com Atrofia Muscular Espinhal (AME), uma doença degenerativa que piora progressivamente e se caracteriza pela perda de força muscular. Por isso, Ana Clara nunca andou, mas mora sozinha com suas gatas  e se locomove para todos os cantos com sua fiel companheira: a cadeira de rodas tatuada como ela que ganhou o nome de Janaína.


Em entrevista ao Blog Letrinhas, Ana Clara fala sobre a infância, o processo de criação de seu primeiro livro e o desejo de contar histórias de pessoas.

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Confira a entrevista com Ana Clara Moniz


Blog Letrinhas: Como surgiu a ideia de escrever o livro e como foi o processo?

Ana Clara Moniz:  O livro ficou dois anos em produção. Foi muito trabalhoso. Tudo começou com o meu Trabalho de Conclusão de Curso da faculdade, que era sobre jornalismo infantil. Produzimos um site de notícias sobre deficiência voltado para crianças. Comecei a postar muito sobre esse trabalho nas minhas redes sociais (desde 2018 Ana tem seu perfil e a Companhia das Letras me procurou com a ideia de produzir um livro. Comecei a escrever algumas coisas, mas parecia que nada engrenava. Foi aí que a Lígia entrou, para me apoiar nesse processo tão complexo de fazer um livro. 


Blog Letrinhas: Para fazer essa seleção de pessoas com nomes de A a Z deve ter sido um trabalhão…

Ana Clara Moniz: Foi! Fizemos uma planilha, encontrando vários candidatos para cada letra. Criamos alguns critérios para garantir diversidade tanto geográfica, quanto étnica e também de tipos de deficiência. É mais fácil as pessoas pensarem em deficiências visíveis - como alguém que não anda, ou que não enxerga ou que não ouve. Por isso, um dos critérios foi justamente mostrar pessoas com tipos de deficiências diferentes, para garantir diversidade. A vivência de um cadeirante e a vivência de uma pessoa com autismo são vivências diferentes. 


Queríamos que o livro fosse realmente mais representativo. Não faz sentido querer falar sobre deficiência para que trazer um olhar para o diverso falando só de pessoas de um determinado tipo. Mas confesso que foi muito difícil achar alguém com a letra X, por exemplo… Enfim encontramos na China o Xu Qing, maior medalhista paralímpico do país.


Blog Letrinhas: E como vocês chegaram a esse formato biográfico de apresentar apenas histórias da infância?

Ana Clara Moniz:  Eu, a Lígia e Débora (Alves, editora da Companhia das Letras)  que queríamos histórias que pudessem ser realmente contadas - para as crianças e pelas crianças. Não queríamos algo muito técnico nem muito didático, queríamos histórias. E partimos da ideia de que o que todas as crianças têm em comum é a infância, como diz a sinopse do livro. Nos baseamos em acontecimentos que realmente existiram para contar a infância dos personagens, utilizando informações públicas, mas narramos partindo da nossa imaginação. 


 Queríamos que as crianças tivessem vontade de conhecer as histórias dessas pessoas - sem ter a deficiência como característica principal. Ana Clara Moniz, jornalista, influenciadora e autora


Blog Letrinhas: Em que momento você se deu conta de que era diferente das outras pessoas? 

Ana Clara Moniz:  Eu tive uma infância muito comum, era muito levada, mesmo não andando. Os meus pais sempre fizeram questão que eu fizesse parte de tudo. Ao mesmo tempo, sempre tive noção de que essa diferença existia, porque os meus pais nunca me esconderam nada. E também porque eu sempre soube sobre a minha doença - até porque precisava explicá-la para os outros.

Mas, por mais que eu soubesse sobre o meu corpo e a minha condição, eu não tinha outras pessoas com deficiência por perto.Cresci sem representatividade. Eu era a única criança com deficiência na minha escola. Eu fui a única, a primeira a vida inteira. Isso fez com que eu demorasse para me entender como uma pessoa com deficiência. A compreender o que eu posso e o que eu não posso. A perceber onde eu queria chegar. Foi só durante a adolescência que fui me dando conta disso. Aí começou a minha procura por outras pessoas com deficiência - não só as pessoas com a mesma doença que eu.


Blog Letrinhas: Além de não ter representatividade, você relata que sofreu muito bullying durante a infância…

Ana Clara: Algo que sempre esteve presente são os olhares das pessoas, de estranhamento, de curiosidade, de me achar “coitadinha”ou me ver como “exemplo de superação”. Apesar de eu ter sido muito acolhida na escola em que estudei minha vida inteira, eu sofria  bullying e vários processos de exclusão, tanto das crianças que não queriam brincar comigo, quanto dos adultos.São episódios marcantes, que talvez eu não tenha entendido na época, mas ao longo do tempo fui assimilando. Lembro de crianças que se escondiam no único lugar que eu não conseguia ir para não brincarem comigo. Perdi amizades pelo tempo que eu passava em hospitais - o que foi quase metade da minha vida. Mas para mim, o grande problema são os adultos, porque as crianças só repetem o que ouvem em casa.Eu não era ouvida pelos adultos - porque acho que nenhuma criança é. Lembro de falar para os médicos de coisas que me machucavam e ninguém me escutava.

 

Ana Clara participava de tudo - só que de um jeito diferente, sempre acompanhada da cadeira de rodas

Ana Clara participava de tudo - só que de um jeito diferente, sempre acompanhada da cadeira de rodas


Blog Letrinhas: Nesse processo de pesquisa para o livro, teve alguma personalidade com a qual você tenha se conectado mais?

Ana Clara Moniz:  Todas as histórias foram muito legais de conhecer. Mas tem uma pessoa em especial que foi muito marcante na minha história: a Frida Kahlo.  A gente aprende sobre ela na escola, mas em momento nenhum me falaram que ela era uma pessoa com deficiência. Eu demorei muito para descobrir e até hoje muita gente não sabe, embora a deficiência, o acidente que ela sofreu e toda a dor que ela sentiu tenham marcado muito sua obra. Ao mergulhar na história da Frida, percebi que se eu soubesse que ela também era uma pessoa com deficiência desde que eu era novinha, talvez muita coisa na minha vida fosse diferente. Imagine, uma das maiores pintoras do mundo era como eu. O curioso é que a Frida não escondia em momento nenhum sua deficiência, mas as pessoas escondiam.


Blog Letrinhas: Nas suas redes sociais, além de falar sobre os preconceitos que pessoas com deficiência são alvo, você também fala abertamente sobre ser bissexual. Como é tratar dessas duas bandeiras simultaneamente?

Ana Clara Moniz: No começo, quando eu estava me entendendo como LGBT, fiquei com medo, porque ser uma pessoa com deficiência já é sofrer muito preconceito. Mas também é muito interessante porque ser uma Pessoa com Deficiência (PcD)  faz com que eu não tenha a mesma vivência que outras pessoas LGBT. Assim como se olharmos só para o imenso guarda-chuva das PcDs, cada uma tem uma vivência diferente, que depende de vários outros recortes: raça, classe social, a história de cada um… No livro, uma das personalidades que escolhemos é Aaron Rose Philip (modelo e ativista pelos direitos das PcD), uma mulher trans e negra. 


Blog Letrinhas: Em que ponto aquilo que é visto como deficiência passa simplesmente a ser um traço de identidade?

Ana Clara Moniz:  A deficiência é uma característica. Faz parte da minha identidade, faz parte de quem eu sou. Não é possível falar sobre a minha história sem falar sobre a minha deficiência. Por mais ela não me impeça de fazer coisas, ela me obriga a fazê-las de formas diferentes. Eu teria uma outra vivência, uma outra trajetória se não fosse ela. No Brasil, principalmente, já temos muito esse movimento de se apropriar da palavra “deficiência” para torná-la algo positivo. O caminho é mesmo ressignificar o termo deficiência, para que não seja “algo a ser consertado” ou “algo que está faltando” e sim uma característica de identidade.Batemos muito nessa tecla de que não está faltando nada. A gente talvez tenha nascido com algo faltando, no sentido de não ter, no meu caso, a mesma condição física, mas isso não me faz inferior a ninguém. 


Blog Letrinhas: E o que você vai levar dessa experiência de escrever seu primeiro livro?

Ana Clara Moniz: Pude provar para mim mesma ser capaz. Quando se tem uma deficiência, a gente cresce muito com essa ideia de que é difícil ocupar alguns espaços. Eu também pude assimilar alguns processos da minha infância que eu não entendia, além de matar um pouco a vontade que a Ana Clara adolescente tinha de conhecer outras pessoas com deficiência. Acho que o livro foi muito importante para mim, acima de tudo. Me fez entender o quão potente nós somos. Há tantas pessoas que fizeram coisas muito legais e que tinham direito a mais reconhecimento e mais representatividade. Essas pessoas mereciam muito mais e a Ana Clara criança também merecia muito mais. 

 

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