O tigre “amarelão”, personagem do livro A lenda dos amigos (Pequena Zahar, 2024), da premiada artista coreana Lee Gee Eun, não fazia a menor ideia do que significa ter um amigo - e o bem que isso pode trazer! Ele gostava mesmo é assustar e não estava nem aí para os outros animais da floresta. Até que um encontro acontece de forma inusitada: um dente-de-leão gruda no pelo da sua cauda - e os dois são obrigados a ficarem juntinhos. Aos poucos, uma amizade brota entre o felino e a flor, que ajuda a fazer desabrochar no tigre a gentileza, a empatia e o carinho. A relação entre os dois não só transforma o tigre, como o aproxima de todos os outros animais. A narrativa, em quadrinhos, foi premiada com Bologna Ragazzi Award, um dos reconhecimentos mais celebrados da literatura infantil.
Não faltam estudos científicos que comprovem o quanto a amizade faz bem. A ciência constatou que ter amigos reduz em até 50% o risco de mortalidade. Que as amizades fortes são mais benéficas para a saúde do que perder peso ou praticar exercícios – embora, é claro, esses dois outros itens sejam também muito importantes! Que manter bons relacionamentos ajuda a melhorar a saúde do cérebro e o relaxamento do sistema nervoso. Há ainda dados que associam amizades à melhora da saúde cardíaca e dos níveis de colesterol e à diminuição dos riscos de depressão e estresse. E daria para listar ainda muitos outros benefícios...
Mas nem precisa ser cientista para se sentir muito melhor depois de compartilhar com um amigo uma boa gargalhada. Ou para conhecer a sensação incrível que é ser acolhido por alguém que te entende e está lá quando você precisa. Ou o contrário: ser você a pessoa de confiança, que dá colo quando um amigo precisa desabafar.
Uma amizade improvável surge entre um tigre e um dente de leão em A lenda dos amigos (Pequena Zahar, 2024)
A história do tigre e da flor mostra como nem sempre uma amizade surge de forma tão espontânea... Construir laços - e saber mantê-los - exige esforço, disponibilidade, paciência... sim, fazer amigos também é algo que se aprende. E isso é algo importante de ser ensinado às crianças desde cedo.
Capa de A lenda dos amigos (Pequena Zahar), da premiada escritora coreada Lee Gee Eun
As primeiras amizades e os benefícios que podem se estender para a vida
Os primeiros amigos são feitos na infância, trazendo benefícios que ressoam por anos e anos. Amizades que acontecem nesse período oferecem ferramentas e aprendizados que serão usados a vida inteira, em diferentes tipos de relacionamentos e situações. “Com as primeiras amizades, as crianças aprendem a compartilhar, cooperar, resolver conflitos e a se comunicar”, aponta a psicóloga Andrezza Fontes, do Instituto Perin (SP). “Essas habilidades são essenciais para a construção de relações positivas e para o desenvolvimento de uma autoestima saudável. O apoio emocional oferecido em cada uma dessas experiências pode ajudar a lidar com desafios de estresse e conflitos familiares, que inclusive podem ser apresentados no ato do brincar”, afirma.
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Quando a criança interage com seus pares, ela começa a entender as normas e expectativas sociais, para além de como tudo funciona dentro da casa dela, com pais e irmãos. “A criança costuma ser o centro da família”, aponta a psiquiatra geral e da Infância e Adolescência, Danielle H. Admoni, pesquisadora e supervisora na residência de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp/EPM). “Em casa, às vezes, ela não recebe tantos limites, tudo é feito para ela. Conviver com outras crianças, ter de esperar o lugar dela na fila para comer, para ir ao banheiro, não ser a única na classe... Isso tudo é um aprendizado enorme porque trabalha a questão da individualidade, da empatia, do senso de comunidade. É um crescimento”, ressalta.
Para a psicóloga Andrezza essas relações de amizade que se formam e se fortalecem fora do núcleo familiar trazem aprendizados distintos. “Na interação com amigos, a criança pratica habilidades de regulação emocional, aprende a lidar com conflitos e com diferentes pontos de vista, aprendendo assim sobre diversidade”, diz ela. E é por isso que esses novos laços trazem benefícios que vão se estender bem além do momento.
“A longo prazo, a capacidade de formar e manter relacionamentos saudáveis na infância está correlacionada com o bem-estar emocional que incide na vida adulta. Crianças que têm amizades sólidas tendem a desenvolver uma maior resiliência emocional, o que as ajuda a lidar com problemas futuros de maneira mais eficaz”, Andrezza Fontes, psicóloga
Além disso, conexões sociais fortes e duradouras refletem em várias áreas da vida, como o desenvolvimento acadêmico e profissional – mais uma associação que já foi comprovada pela ciência. “Experiências sociais na infância não só moldam o comportamento e as habilidades imediatas das crianças, mas também têm um impacto profundo e duradouro na vida adulta delas. Essas relações iniciais são fundamentais para o desenvolvimento de uma vida equilibrada, satisfatória e feliz”, completa Andrezza.
O tempo passa, as estações mudam, mas algumas amizades permanecem, como acontece em A lenda dos amigos (Pequena Zahar, 2024)
O papel dos adultos na facilitação dos encontros e como modelos de relações
Por serem livres das barreiras sociais construídas pelos adultos, as crianças tendem a apresentar mais facilidade de criar amizades. Se aproximam de forma mais espontânea, não têm medo do que o "outro" vai pensar dela, falam o que pensam e sentem. Só que para construir amizades, elas precisam de oportunidades de conviver com outras crianças. Por isso, no início, o papel dos pais, familiares e cuidadores é proporcionar esses encontros e deixar “que a mágica aconteça”. “Temos visto muitas crianças que só convivem com adultos e acabam ficando muito individualistas”, lembra Andrezza. “Elas são sempre o centro da atenção e têm uma dificuldade de conviver com o outro. Então, quanto antes essa convivência começar, melhor”, diz a psicóloga.
Embora os pequenos aprendam muito com os amigos, antes disso, o desenvolvimento das primeiras habilidades sociais – que serão usadas como base, inclusive, para essas outras relações – vêm da família. Se os pais têm amigos, valorizam essas amizades, apoiam esses amigos, são apoiados por eles, têm conflitos e resolvem esses conflitos... as crianças, pelo exemplo, vão compreender como funcionam as relações fora do núcleo familiar. “Se os pais ou cuidadores demonstram essas habilidades sociais positivas, como respeito, empatia, comunicação clara e saudável, as crianças tendem a imitá-los”, diz a psicóloga.
Ensinar a socialização ajuda a criança a aprender e a resolver conflitos e a se colocar no lugar do outro. Existem algumas maneiras de estimular isso, começando no próprio núcleo familiar, que funciona como um modelo para este comportamento”, Andrezza Fontes, psicóloga
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Ou seja, se as crianças observam os pais construindo, mantendo e cultivando amizades de forma saudável, extraem um exemplo poderoso de como as relações interpessoais funcionam e da importância de cultivar essas conexões. "Ver os pais participando de trocas afetivas, ajudando os amigos em momentos de necessidade e desfrutando da companhia dos outros oferece às crianças um modelo prático do que significa ser amigo. Esses exemplos ajudam a criança a entender que amizade envolve reciprocidade, empatia, apoio mútuo e claro, diversão. Além disso, observar os pais lidando com os desafios das amizades, como os desentendimentos ou a necessidade de equilibrar várias responsabilidades, também oferece lições valiosas sobre como navegar pelas complexidades das relações sociais”, explica Andrezza.
Para que as crianças tenham um bom desenvolvimento emocional e aprendam a conviver e a fortalecer laços sociais, é fundamental ensiná-las – tanto pelo diálogo, como pelo exemplo - habilidades como compartilhar, esperar a sua vez, escutar o outro, o enfrentamento de situações adversas, a resolução de conflitos. “Quando surge algum desentendimento entre amigos, é importante que os pais orientem as crianças a resolver a situação de forma pacífica e justa, em vez de intervir diretamente”, orienta. Também pode ser necessário distanciar a criança da situação, no intuito de acalmá-la, antes de partir para a resolução.
“Escute atentamente a criança, sem julgar ou minimizar seus sentimentos. Isso ajuda a fortalecer a confiança e a segurança emocional necessária para lidar com as amizades. É importante fazer com que ela também entenda como o outro se sentiu numa situação de conflito. A família pode oferecer equilíbrio entre independência e suporte”, afirma. Assim, a criança sente que pode contar com o apoio dos pais, mas também que é capaz de aprender a gerenciar suas próprias relações.
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As crianças crescem e as amizades vão se transformando
A forma de lidar e de se relacionar com os amigos vai mudando ao longo da vida, à medida em que o próprio desenvolvimento avança. “Conforme as crianças crescem, as amizades se tornam mais complexas e importantes, refletindo no desenvolvimento de todas as habilidades socioemocionais”, diz Andrezza, que explica as transformações assim:
- Até os 5 anos - as interações são mais básicas e centradas no brincar;
- De 6 a 12 anos - as amizades começam a ganhar uma nova importância, já que as crianças começam a buscar mais interação social e a desenvolver relações mais significativas;
- A partir dos 13 - na adolescência, as amizades se tornam centrais para o desenvolvimento. Adolescentes buscam um senso mais profundo de identidade e pertencimento;
- Fase adulta - embora a natureza das amizades possa mudar com o tempo, devido às responsabilidades da vida, as habilidades sociais e o valor dessas relações, desenvolvidas lá na infância e na adolescência, continuam a desempenhar um papel importante qaundo as amizades se transformam em redes de apoio e influenciam a qualidade de vida.
Também vale notar que, no início, as amizades são proporcionadas pelos pais. Ao longo do tempo, isso muda. “Quando as crianças são pequenas, elas brincam e convivem com quem é oferecido, na escola que os pais colocam, com os filhos dos amigos dos pais, as crianças do prédio. Na medida em que vão crescendo, elas passam a escolher quem tem mais afinidade com elas e isso é interessante”, avalia a psiquiatra Danielle. “ Isso também ajuda a moldar a nossa personalidade, as pessoas com quem convivemos, o que aceitamos e o que não aceitamos do outro, o tipo de relacionamento que queremos”, reflete.
"Agora somos todos amigos, não é?" Ilustração de A lenda dos amigos (Pequena Zahar, 2024)
Criar laços é correr riscos
Ter amigo é importante para o desenvolvimento, para o bem-estar e até para a saúde. Mas existe um lado difícil, sobre o qual não dá para deixar de falar. Quando uma criança se apega a alguém, no sentido de criar uma conexão importante, ela também fica sujeita a sentir e a sofrer se, em algum momento, essa convivência for interrompida. Se o seu filho gosta muito dos amigos da escola, o período das férias pode vir com a frustração de ficar longe deles. Com o tempo, ele aprende que a distância e a saudade podem ser manejadas, que existem maneiras de se conectar, mesmo estando longe... E que os reencontros podem ser muito especiais.
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Existem ainda os distanciamentos mais significativos, quando a criança ou o amigo mudam de escola, de cidade, de país. Lidar com tudo isso nem sempre é fácil, mas também faz parte do aprendizado e da aquisição de habilidades sociais e regulação emocional. “Em algumas situações, a convivência passa a ser infinitamente menor com aquela pessoa, então é preciso falar sobre isso. É importante explicar que podemos tentar manter os laços, mas que será diferente de quando convivemos no dia a dia, quando estamos na mesma escola, no mesmo prédio”, recomenda Danielle. Hoje, há diversas maneiras de se conectar com quem está longe e os pais podem estimular e ajudar as crianças a fazer isso com chamadas de vídeo, ligações, enviando presentes. Ainda assim, é importante que as crianças também vivenciem a transformação das relações - afinal ela vão mudar e os amigos também.
É fundamental explicar que mudanças acontecem, que as pessoas saem da nossa vida e outras pessoas legais entram. Dentro do possível, podemos tentar manter esses relacionamentos, mas eles serão diferentes", Danielle H. Admoni, psiquiatra
Andrezza acrescenta que essas mudanças podem ser difíceis e que validar o sentimento da criança faz toda a diferença. “É importante conversar abertamente, incentivar a criança a expressar seus sentimentos e preocupações, ensinar sobre resiliência, encorajar a criança a ver as mudanças como oportunidades para crescer e aprender. Foque em novas oportunidades, encoraje a criança a se abrir para novas amizades, participar de novos hobbies”, diz ela.
Às vezes, nem é preciso uma mudança ou separação física para que uma mudança aconteça. É preciso entender que, conforme o tempo passa, nós vamos nos transformando de diferentes formas – e os amigos também. Uma amizade que fazia muito sentido em um certo período da vida pode passar a não fazer mais. E isso é normal. “Todas essas abordagens podem ajudar as crianças a entender e a se adaptar às mudanças em suas amizades, promovendo um desenvolvimento social saudável e positivo”, afirma Andrezza.
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