Será que vale tudo para estimular o gosto pelos livros e formar novos leitores?
O caso de uma mãe que pagou 100 dólares para que a filha de 13 anos lesse um romance ganhou repercussão em um artigo publicado no The New York Times - e dividiu opiniões. A mãe, Mireille Silcoff, crítica cultural e autora, relata no texto que viu seus argumentos para despertar na filha o amor (ou pelo menos o interesse) pelos livros se esgotarem. "Sim, ler é uma forma de ampliar seu universo e descobrir novos mundos – mas toda a internet também é. Portanto, essas discussões, que incomodavam a nós duas, inevitavelmente se reduziriam à minha persuasão sobre cognição e atenção e como a leitura é 'boa para você”, escreve. Mireille conta que não se arrependeu da decisão - ainda que tenha sido claramente seu último recurso.
Mas será que apenas ler basta?
Qual é a diferença entre ser leitor e ser simplesmente alguém que lê - porque precisa ou porque alguém mandou?
Ilustração de Direitos do pequeno leitor (Companhia das Letrinhas, 2017)
Para Danila Guedes, educadora da associação Vagalume, que promove a leitura e a gestão de bibliotecas comunitárias, uma experiência autêntica de leitor se assemelha a um mergulho no rio. Para ela, os leitores vorazes são aqueles “que se caracterizam pelo desejo de mergulhar nas histórias, a capacidade de selecionar o tema que mais lhe agrada a partir de uma conscientização crítica e individual”. Ou seja, não são aqueles que apenas se apropriam de um texto, sendo capazes de decifrá-lo e compreendê-lo, mas que ficam imersos na leitura, entregues à história. Que desfrutam. Que encontram prazer no ato de ler, sabem o que lhes agrada e buscam a leitura sem utilitarismos - ler por ler, apenas.
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Do outro lado, há aqueles que leem apenas de forma pontual, para atender a uma necessidade da escola ou do trabalho, porque querem “extrair” algo do texto ou porque receberem algum tipo de recompensa. “Dificilmente esses indivíduos experimentarão um mergulho no rio, o banho alcançado pelas histórias literárias que aguçam com profundidade o senso crítico, a empatia, o devaneio de quem com frequência submerge-se nas histórias que moram nos livros literários”, explica a educadora.
Com base na experiência da associação na formação de leitores, Daniela não acha que monetizar a leitura seja o melhor caminho para incentivar o gosto por ler. “Nos arriscamos afirmar que a motivação para uma criança tornar-se leitora surge, especialmente, pelo ato de conhecer os livros, de ter em seu cotidiano momentos de apreciação das histórias literárias não só com fins didatizantes, mas como oportunidade de devaneio, de lazer”, explica. Por isso, para a educadora, ao contrário de formar um leitor, pagar pela leitura de um livro pode até afastar as chances de desenvolver a “apreciação literária como prática cultural”. Fica difícil encontrar o prazer em ler na própria experiência leitora, fazendo com ela baste por si só, em vez de depender de fatores externos, alheios aos livros.
Pensando nisso, fizemos uma lista com ideias para criar novos leitores, estimulando o desenvolvimento de uma relação profunda - e duradoura - com os livros e a literatura. Confira as dicas:
Como formar novos leitores realmente apaixonados pela literatura
Garantir acesso aos livros - o Brasil é um país em que os livros e a literatura ainda não estão ao alcance de todos - e as desigualdades são ainda mais escandalosas em algumas regiões. “Quando o olhar se acentua para os povos dos campos, rios e florestas da Amazônia esse dado é ainda mais alarmante”, alerta Danila, lembrando que a Amazônia Legal possui apenas 13% das bibliotecas públicas brasileiras e coleciona os piores indicadores educacionais do país. “Neste caso, a primeira reflexão a fazer é compreender que para formar leitores é necessário democratizar o acesso ao livro e a literatura”, explica. É por isso que pensar e investir em bibliotecas comunitárias é tão importante.
As bibliotecas comunitárias se configuram como um espaço onde é possível compartilhar saberes, cujo estímulo pelo gosto de ser/tornar-se leitor nasce quando uma diversidade literária é semeada na comunidade e os livros passam a fazer parte do cotidiano daquele grupo, Danila Guedes, educadora da associação Vagalume
Em casa, para quem tem o privilégio de poder comprar os próprios livros, a palavra de ordem é deixá-los sempre à disposição das crianças, em diferentes situações. Uma ideia é criar cantinhos diferentes em cada cômodo, com cestos e prateleiras que fiquem ao alcance das crianças - e, de preferência - fazer periodicamente um rodízio das obras, para trazer ares de novidade.
Investir em uma boa mediação - no começo, a criança não é capaz de ler sozinha. O papel do mediador de leitura, seja em casa ou na escola, é justamente ser essa ponte entre o leitor e os livros. É o mediador quem apresenta as histórias e ajuda a despertar o interesse pela leitura. Pais e cuidadores podem - e devem - exercer esse papel. Na leitura para bebês e crianças pequenas, vale lembrar que o tempo de atenção delas é reduzido. É importante conhecer antes as histórias a serem apresentadas e deixar a imaginação assumir o controle. Crie vozes diferentes para cada personagem, mude o ritmo e a entonação conforme o momento da história, imite sons para despertar a curiosidade e trazer mais graça às histórias. Os leitores bem pequeninhos adoram repetições e onomatopeias. Ainda assim, é importante lembrar que mesmo antes de ser alfabetizada, a criança deve ser encorajada a “ler” sozinha. A contar histórias da forma como se lembra, com suas próprias palavras e em seu ritmo - isso já faz parte do comportamento leitor. Saiba mais sobre o que a criança aprende lendo junto e lendo sozinha aqui.
Estimular a leitura desde cedo - um estudo publicado no periódico americano Psychological Medicine apontou que crianças que leem por prazer desde cedo têm menos chances de chegar à adolescência enfrentando questões de saúde mental além de performar melhor em testes cognitivos. Mas além dos benefícios ao desenvolvimento intelectual, a leitura também pode ser uma experiência afetiva, tanto em relação à história quanto em relação ao mediador - o adulto que a apresenta. Quando pensamos, por exemplo, no que é um livro para bebês, precisamos levar em conta que a experiência leitora não se restringe a ser capaz de “entender” a narrativa, mas do vínculo, da conexão que a experiência de leitura é capaz de estabelecer.
Deixar que mesmo os pequenos leitores manipulem os livros - bebês e crianças pequenas têm uma relação muito mais sensorial com os livros. E a materialidade pode ser justamente o fator que desperta o interesse pelas histórias - mesmo que isso signifique puxar a capa, amassar as páginas, sentar em cima das obras… E tudo bem. Não é à toa que alguns livros especialmente feitos para os leitores muito pequenos são cartonados, têm cantos arredondados ou são até de plástico, borracha, tecido…Tudo para permitir que a experiência leitora flua de forma tranquila e segura. A interação com o livro enquanto objeto faz parte - afinal, ele é o suporte para que as histórias possam ser registradas. Veja como escolher livros para bebês nesta reportagem.
Respeitar os direitos do (pequeno) leitor - pode largar um livro no meio? Pode reler a mesma história 50 vezes? Pode ler de ponta cabeça? Claro que pode! No livro Direitos do pequeno leitor (Companhia das Letrinhas, 2017) , de Patricia Auerbach, com ilustrações de Odilon Moraes, somos lembrados de que a experiência leitora é individual - e que não tem certo e errado. Respeitar a forma como cada criança se aproxima (ou se afasta) das histórias e do próprio livro como objeto faz parte da experiência leitora.
Incentivar o progresso da leitura aos poucos - oferecer livros mais curtos ou em capítulos é um passo importante na formação leitora. Antes de chegar a obras mais densas, que exigem mais capacidade e concentração e interpretação, pode ser importante oferecer às crianças a possibilidade de avançar gradualmente. Textos mais curtos vão ajudando a criar corpo para decifrar textos mais complexos e até os 8 ou 9 anos pode ser importante ter o suporte de imagens na experiência de leitura, como contamos nesta reportagem.
Conectar os livros ao mundo em que vivemos - a literatura é uma oportunidade de abordar temas que fazem parte da vida das crianças, que estão presentes nas ruas, nas aulas da escola, nas conversas durante o jantar. Pobreza, crise climática, guerras. Tanta coisa difícil de entender - e de explicar - pode ser contada pelos livros e nos ajudar a olhar para o mundo em que vivemos sob novas perspectivas. Falamos sobre o poder dos livros na resolução de problemas reais neste texto.
Estipular uma hora do dia dedicada à leitura - ter um momento especial para aos livros ajuda a tornar a leitura um hábito, não apenas da criança, mas de toda a família. Pode ser na volta da escola, antes do banho ou na preparação para dormir - não importa. Quando a leitura vira rotina na casa, todo mundo lê mais - e tem a chance de compartilhar suas impressões! E não vale ser o livro que a criança precisa ler para fazer o dever de casa. Estamos falando de reservar momentos dedicados à leitura por puro prazer.
Criar clubes de livro - encontrar espaços para que as impressões sobre leituras sejam compartilhadas, encorajar as crianças a relatarem suas experiências leitoras e a refletirem sobre as obras também é um caminho importante para consolidar um comportamento leitor - e promover o encontro com mais leitores apaixonados. Além disso, fazer parte de um grupo leitor é uma boa oportunidade de encontrar amigos que tenham interesses comuns. Vale buscar clube de livros de temas específicos ou mesmo incentivar as crianças a promoverem encontros com a própria turma da escola.
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