Por Marcelo Tolentino
Não me lembro de ter tirado nenhuma nota excelente em redações. Estava sempre ali, ligeiramente acima da média, às vezes ligeiramente abaixo. Também não me lembro especialmente de nenhum professor de literatura daqueles de filme, que transbordam paixão pelas palavras e exercem uma espécie de feitiço sobre os alunos. Em contrapartida, sempre tive atração e estímulos para me comunicar visualmente, tanto em casa quanto na escola. Faço esta introdução, sobretudo, para dizer que escrever um texto público, como este aqui, sem o protagonismo das ilustrações me ajudando a contar a história, não é tarefa fácil.
Nos últimos anos publiquei três livros por selos do grupo Companhia das Letras – Domingo (Companhia das Letrinhas, 2024), Papai, ó! (Pequena Zahar, 2024) e Nem Todo (Companhia das Letrinhas, 2024). Nos próximos parágrafos tentarei falar um pouco sobre como funciona meu processo criativo e suas nuances na hora de transformar ideias em livros.
Dos cadernos de desenho do autor para as páginas de Domingo (Companhia das Letrinhas, 2023): tudo começa com as imagens
Sou um contador de histórias visuais e meus grandes aliados nessa empreitada são os caderninhos de bolso. Eles são tomados por desenhos, e entremeados de escrita, com textos registrando fluxos de pensamento, situações presenciadas em caminhadas, sonhos, e fragmentos de ideias que podem se juntar a outros mais para frente. São caóticos e bagunçados de uma forma que só eu me entendo com eles (um pouco parecidos com meu espaço de trabalho).
Nesse espaço seguro, me dou bem com a palavra, principalmente por seu caráter intermediário e possivelmente passageiro. A qualquer momento, elas poderão ceder espaço para uma imagem. O texto verbal das minhas histórias geralmente é construído nos espaços em que a imagem permitiu.
Os cadernos já faziam parte da minha rotina muito antes de me enxergar como autor de livros ilustrados, mas foi após um curso breve e poderoso, ministrado pela Carolina Moreyra e pelo Odilon Moraes, que ganhei consciência desse processo libertador de trabalhar os roteiros das histórias tirando o peso definitivo que a palavra escrita ganha. É comum que alguma imagem interessante brote na minha cabeça e logo seja rascunhada no caderno. Um olho que parece uma galáxia virou o fechamento de Domingo, assim como um par de cones vistos na rua me suscitaram um simpático casal de gnomos, que aparecem numa das passagens que acho mais divertidas de Papai, ó! Essas anotações visuais ficam à espera de um roteiro que, como uma costura – processo que muitas vezes observei nas mãos de minha avó e minha mãe – vai alinhavando todos esses fragmentos na construção de uma narrativa.
Gasto bastante tempo refinando o roteiro, pensando na composição de cada página dupla e montando uma infinidade de bonecos, sempre feitos em uma proporção que caiba no bolso e possa me acompanhar para cima e para baixo. Durante este tempo vou fazendo testes em paralelo de qual será o tom, a técnica, a identidade visual do livro da vez. Admiro ilustradores que encontraram uma marca registrada e conseguem trabalhar quase toda sua obra seguindo uma mesma visualidade. Não é o meu caso. O caminho escolhido por mim é sempre um cruzamento entre o que acho que o livro pede com o que estou com vontade de experimentar no momento.
Os rascunhos que começaram no caderno viraram ilustrações feitas em aquarela em Papai, ó!
O livro Nem todo foi feito integralmente com pincel e tinta vinílica, em parte porque achei que as cores vivas e uniformes traziam a diversão que os animais pediam, em parte porque tinha acabado de vir de uma jornada fisicamente extenuante, de desenhar um livro com ilustrações hachuradas e muito cheias de detalhes. Domingo teve suas linhas feitas com nanquim e ganhou cores digitalmente, pois a vida me exigiu a praticidade do mundo virtual já que pintava o livro nos intervalos de sonecas do meu filho recém-nascido. Papai, ó! foi todo pintado em aquarela, achei que era a técnica perfeita para o passeio imaginativo que acontece durante o livro, mas também foi uma resposta a provocação da amiga, Dani Gutfreund, que despretensiosamente comentou que gostava das minhas pinturas e que gostaria de vê-las em algum de meus livros.
Sinto que fazer livros ilustrados também tem um quê de brincadeira, e como toda boa brincadeira, é coisa séria. Para os que se interessam pelo assunto e tem vontade de produzir fica esta sugestão: caminhe com os olhos atentos, um caderninho e uma caneta. Colecione todos os fragmentos que te chamarem atenção. Alguns vão grudar com mais força e quando você menos esperar tem uma história se construindo.
***
Marcelo Tolentino já trabalhou como publicitário, tem formação em artes plásticas pela Escola Panamericana de Artes e gosta de contar histórias a partir das imagens que brotam em seus pensamentos - e que ele registra em seus cadernos de desenho. Além de ser professor e contador de histórias, ele é pai do Martim, de 3 anos, que emprestou seu nome ao protagonista de Domingo