Diversão ou cilada? Os riscos das redes sociais para crianças e adolescentes

19/06/2025

Você já conhece a Chapeuzinho Vermelho. O que você não sabia é que ela cresce e se transforma em uma detetive profissional - “a melhor do Reino Encantado” - ajudando outras pessoas a não caírem nos golpes do Lobo Mau. Ou pelo menos é isso que acontece em Detetive Chapeuzinho e o mistério da sombra digital (Companhia das Letrinhas, 2025), do Coletivo Sabichinho, formado por André Rodrigues, Larissa Ribeiro, Paula Desgualdo e Pedro Markun.

Ilustração de 'Detetive Chapeuzinho e o mistério da sombra digital'

Chapeuzinho recebe um pedido de ajuda pelo celular: uma sombra perdeu o corpo. E a investigação vai começar em Detetive Chapeuzinho e o mistério da sombra digital (Companhia das Letrinhas, 2025)

A história começa quando a Chapeuzinho chega ao seu escritório e recebe uma mensagem com um pedido de ajuda sobre um novo caso: uma sombra que havia perdido seu corpo! A menina inicia sua investigação a partir de um pacote com três pistas - uma delas aponta para Fabulândia, uma rede social em que as pessoas se reuniam para conversar e onde era “comum os visitantes se esquecerem da vida e dos compromissos do lado de fora”. Um spoiler: qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência. 

Quem tinha o controle absoluto da Fabulândia era a Rainha de Copas. Ela é quem determinava as regras decidindo quem podia (ou não) entrar e - pasme - fazia todo mundo que entrava na Fabulândia trabalhar para ela, produzindo vídeos, fotos e vendendo produtos. De novo, nada é por acaso nessa tal de Fabulândia… Inclusive, Chapeuzinho, também precisa aceitar Termos de Uso um tanto confusos para poder entrar.

À medida em que a menina vai seguindo as pistas para tentar resolver o mistério, e acaba quase sempre distraída por tantos estímulos diferentes, os leitores vão se deparando de forma surpreendente com os perigos ocultos de perambular pelo mundo digital. Do avatar obrigatório para entrar ao cookie aparentemente inofensivo que Chapeuzinho aceita…. tudo se combina e desemboca em um plot twist da-que-les quando o mistério finalmente é desvendado.


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Era uma vez um mundo digital - não tão distante

Ilustração de 'Detetive Chapeuzinho e o mistério da sombra digital'

Para entrar na Fabulândia, Chapeuzinho troca sua capa vermelha por um avatar, uma capa amarela. Porque no mundo digital, cada um pode ser o que quiser

Detetive Chapeuzinho e o mistério da sombra digital (Companhia das Letrinhas, 2025) é um daqueles livros para ler e reler, colocando em pauta perigos reais, mas sem alarmismo. Especialmente em um momento em que se discute como nunca o uso de tecnologias, olhando para a segurança, para o impacto na saúde mental e na própria aprendizagem. “O livro traz humor e uma certa leveza, mesmo sendo chocante. Livros que tratam de temas difíceis não podem ser livros deprimentes. Abrimos o debate, mas  não queremos trazer respostas prontas”, explica Paula Desgualdo, uma das autoras.  Recentemente, dois fatores aqueceram esse debate: a proibição do uso de celulares nas escolas de todo o Brasil e o anúncio da Meta, detentora do Facebook e do Instagram, sobre a redução da moderação de conteúdo.

O projeto do livro surgiu originalmente a partir do convite de uma empresa que trabalha com privacidade digital e tocava uma campanha chamada “Era uma vez privacidade”. “A partir do que já existia propusemos fazer um projeto maior, que ampliasse o tema da privacidade digital para redes sociais”, explica Paula. Alguns personagens do livro, como a própria Chapeuzinho Vermelho, já estavam na campanha, mas outros vieram depois. Alguns deles, como personagens de jogos como Minecraft, surgiram a partir das oficinas com crianças organizadas pelo coletivo Sabichinho em 2022, para colher insumos para a história. 

Em uma das dinâmicas, cada uma recebia um número. E cada vez que uma criança passava por uma rede social, precisava responder a uma pergunta - qual é sua cor preferida? O que você gosta de comer? Você tem animais de estimação? “No final, tínhamos várias informações sobre cada número e quando as crianças se davam conta disso, ficavam chocadas. Algumas vezes, era possível até deduzir a quem correspondia o número pelas respostas dadas”, lembra Paula.

Pedro Markun, também integrante do coletivo, conta que as oficinas serviram como uma espécie de validação para entender como se estabelecia essa relação das crianças com as redes sociais. “A gente percebia que havia um leque: das crianças cujos os pais ainda não davam acesso a dispositivos eletrônicos até aquelas que eram pequenos youtubers ou tiktokers e que já tinham seus próprios canais de produção de conteúdo. Isso para mim dialoga muito com o mote central do livro que é a sedução que a rede tem de te convidar a se expor, a colocar um conteúdo que é seu para ganhar likes", conta. A grande questão é que essa exposição nem sempre é assim tão óbvia. E pode acarretar perigos bem reais.


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Os riscos ocultos das redes sociais

“Algumas das principais ameaças e riscos que as crianças e adolescentes podem enfrentar na Internet incluem acesso e exposição a conteúdos inapropriados, violentos ou extremistas, compartilhamento não autorizado de dados pessoais sensíveis para fins de consumo, cyberbullying, que é uma violência sistemática que ocorre entre crianças e adolescentes através das plataformas digitais, assédio e aliciamento sexual infantil, além de situações envolvendo compartilhamento não consensual de imagens íntimas ou ameaça de exposição dessas imagens”, explica a psicóloga Bianca Orrico, que atua em programas da ong Safernet e é doutora em Estudos da Criança pela Universidade do Minho, Portugal. A especialista cita que 29% das crianças e jovens entre 9 e 17 anos que participaram da pesquisa TIC Kids Online 2024 reportaram ter acontecido alguma coisa na Internet que não gostaram, os ofenderam ou os deixaram chateados. A pesquisa produz anualmente indicadores sobre oportunidades e riscos relacionados à participação on-line de crianças e adolescentes.

A juíza Vanessa Cavalieri, titular da Vara da Infância e Juventude do Rio de Janeiro, recentemente participou de um episódio do podcast Fio da meada, conduzido por Branca Vianna, falando sobre crimes digitais e o uso de redes sociais por crianças e adolescentes. Durante a conversa, a juíza fala sobre um novo perfil de infrações, cometidos por jovens de classe média no universo digital - crimes dos quais os pais não têm nem ideia. “É muito preocupante o grau de desconhecimento das famílias. Por um lado tem isso de ser analfabeto digital e não saber como faz, que é perigo. E há também a outra vertente das famílias que acham que basta conversar, que ficar olhando as conversas do filho é invasão de privacidade”, comenta a juíza durante o episódio.

Para Bianca, além de todas essas questões que envolvem segurança, os desafios em relação à saúde mental de adolescentes e jovens no contexto da Internet também são múltiplos e complexos. Em Detetive Chapeuzinho e o mistério da sombra digital, um dos pontos mais marcantes do percurso de Chapeuzinho pela Fabulândia é a facilidade com que ela se distrai e, tantas vezes, quase se esquece do que estava fazendo naquela rede social tão cheia de atrativos - com vídeos, com dancinhas, com receitas… E Chapeuzinho não é a única que perde o foco.. Dados da pesquisa TIC Kids Online 2022, afirmam que 1 em cada 4 adolescentes de 15 a 17 anos já usou internet sem ter interesse no que via, já passou menos tempo com amigos e família para ficar online e já quis passar menos tempo online, mas não conseguiu. Esse dado ilustra como, para muitos adolescentes, ainda é difícil desenvolver uma rotina digital que seja equilibrada e saudável.

Bianca também destaca a pressão estética e a dismorfia corporal, amplificadas pelo uso de filtros e ferramentas de edição, como outros fatores ligados às redes sociais que têm impacto significativo na saúde mental de crianças e jovens. “Aproximadamente 4 em cada 10 adolescentes relatam arrependimento por postagens feitas, o que reflete a dificuldade de manter uma percepção saudável e realista de si mesmos, impactada pelas expectativas irreais promovidas em especial através das redes sociais”, comenta. 


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Como preparar crianças e jovens para o universo digital?

Para a educadora parental Claudia Alaminos, que ajuda famílias no relacionamento com adolescentes e compartilha informações no perfil @claualaminos, o ideal é começar a conversar sobre os riscos da presença no mundo digital bem antes de dar aos filhos acesso a redes e dispositivos - embora isso nem sempre seja possível. E esse diálogo precisa acontecer sem alarmismo, mas informando sobre perigos reais. “Precisamos orientar os nossos filhos sobre o risco que cada um de nós corre ao utilizar as redes sociais, ressaltando que esse não é um privilégio dos adolescentes, embora eles estejam mais expostos”, explica a especialista.Ela conta que já atendeu casos de adolescentes que receberam ameaças, sofreram extorsões e que demoraram para contar para os pais porque não estavam bem orientados e só sentiram medo e desespero.

Por isso, para ela é essencial criar um ambiente de confiança entre pais e filhos. “Se o jovem trouxer algo que os pais precisam corrigir, orientar ou ajudar, é fundamental que eles deixem o adolescente falar até o final, para depois darem a orientação. Interromper ou ficar fazendo cara de espanto e desespero só vai inibir e a tendência do adolescente que é dourar a pílula”, orienta. Ainda assim, ela defende  que é preciso que os pais acompanhem, sim, o que os filhos fazem nas redes sociais. E isso inclui ter acesso a celulares e computadores dos filhos.


“Dar total privacidade, não ter a senha ou nunca olhar o que uma criança ou um adolescente faz nas redes sociais é o mesmo que deixar essa criança ou esse adolescente numa rua escura e desconhecida na madrugada sem nenhum tipo de companhia. É realmente muito complexo e muito arriscado” Claudia Alaminos, educadora parental

 

Ela ressalta, no entanto, que principalmente quando se trata de adolescentes, qualquer proibição - especialmente sem negociação - pode ter um efeito catastrófico. “A  curiosidade somada à necessidade de transgressão que os adolescentes têm vai aumentar muito as chances de que ele faça escondido. E aí, quando ele faz escondido, os pais vão ficar completamente sem acesso àquilo que ele faz na internet”, comenta. 


Veja outras dicas de Claudia Alaminos para fazer um uso mais saudável das redes sociais em casa:


- é essencial dosar o tempo de uso da internet e de dispositivos móveis, garantindo momentos de convivência livre das telas. Traga orientações e faça combinados;
estabeleça com as crianças/adolescentes critérios muito claros de quando é permitido adicionar pessoas desconhecidas que se aproximam por DM ou com solicitações para seguir o perfil em qualquer rede social;
- deixe claro o que pode e o que não pode ser postado. E avise que intervenções serão feitas sempre que houver alguma situação de risco ou se o/a filho/a apresentar mudanças bruscas de comportamento;
- se seu/sua filho/a quiser usar uma rede social que você ainda não conhece, faça um perfil antes, veja como funciona, tente entender qual é o perfil das pessoas que fazem uso dela e como funciona a moderação antes de autorizar;
- compartilhe com seu adolescentes informações e reportagens sobre crimes e transgressões que acontecem no mundo digital;
- oriente sobre o cyberbullying, para que a criança não faça comentários ofensivos nem publique fotos de pessoas que não a autorizaram a fazê-lo. É importante que elas saibam que o que acontece no mundo digital tem consequências no mundo real.

(Texto: Naíma Saleh)

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