As janelas da espera na literatura — ou quanto vale a generosidade do escritor

31/08/2016

Por Luiz Schwarcz

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Ilustração: Alceu Chiesorin Nunes

livre42Inúmeros escritores pensam em tramas mirabolantes como forma de fisgar o leitor. Procuram conquistar seu público com viradas inesperadas na história, que no fundo respondem mais aos anseios do ego de quem escreve — que se julga esperto ao criar tantas fantasias inesperadas — do que dialogam com o imaginário de quem lê. Tentar conquistar o leitor com surpresas mal trabalhadas ou novidades em excesso é um erro comum. Talvez alguns escritores não entendam que o mais importante é criar uma situação de igualdade com o leitor, uma verdadeira parceria, em que não há um polo superior. Nesse sentido, escrever é um ato de entrega, generosidade e compreensão.

Há artistas que se tornam arrogantes, agindo como verdadeiras estrelas. E se essa não é uma situação aceitável na vida privada, eu diria que ela é também inadmissível no momento da escrita. Arrisco dizer que quem escreve sem generosidade, sem querer se colocar em posição equivalente a quem está na outra ponta, certamente não criará valores literários importantes. Mesmo o mais rabugento dos escritores — como Thomas Bernhard ou Louis-Ferdinand Céline —, ao escreverem expondo repetidamente um suposto desprezo pela humanidade, o fazem com respeito pelo leitor. Como se com seus livros estivessem a dizer: eu desprezo todos menos você que me lê.

No tempo lento em que a leitura se dá, no intervalo largo em que ocupamos esse espaço fora do tempo, há uma equiparação entre o escritor e o leitor, que vivem uma espécie de relação amorosa. Se acham a afirmação exagerada, pensem então naqueles momentos especiais em que uma amizade é sorvida por completo — um passeio de braços dados numa avenida, ou o sorriso aberto de cumplicidade total entre dois velhos amigos ou amigas, como se as bocas formassem uma só. Sugiro que pensemos nessas imagens para simbolizar os momentos compartilhados à distância por aqueles que escrevem e os que os leem.

O que nos prende a um texto é basicamente o convite que o escritor nos oferece, o convite de que esperemos juntos. Na vida, temos cada vez menos tempo para esperar. Ou esperamos sem saber por quê. Na literatura, a espera é fundamental e seu objetivo é mais concreto. O escritor nos oferece a oportunidade de suspender o tempo, e dentro dessa suspensão cria outras suspensões, que aqui chamei de esperas. Ao ler, aguardamos por uma surpresa detetivesca ou vivenciamos um mergulho psicológico na psique humana, ou nos entregamos a um romance água com açúcar, ou simplesmente deixamos que o escritor nos apresente uma voz diferente da que ouvimos no dia a dia. Todas essas situações equivalem a uma forma de espera.

Onde quero chegar com tudo isso? Não conseguiria dar conta aqui de uma extensa psicologia da leitura. Meu objetivo é muito menor. O leitor atento poderá perceber que o que quero com esta crônica é apenas dar sequência a dois temas abertos em outros posts, quando falei o que penso sobre o começo e o final das obras de ficção. Aqui se fala então do meio, do miolo, do que prende ou não os leitores num romance ou conto; do que faz os leitores aceitarem o convite generoso de quem escreve.

O que faz o meio do livro ser atraente, em minha opinião, é justamente como o escritor manipula as várias esperas que durante a leitura são criadas. Ao comparar brevemente o conto com o romance, mencionei que o segundo pode desagradar mais se criar a sensação de incompletude. No conto, que opera com a premissa da falta de espaço, o escritor em geral usa a brevidade a seu favor. Com esse argumento não quis afirmar que o romance tem que fechar a história e entregar ao leitor uma solução, uma equação que se resolve no final. Agindo assim o escritor terminaria o ato amoroso numa posição de superioridade, perderia o sentido de generosidade, implícita no convite ao leitor. Da mesma forma, como não há amor e amizade com desigualdade, o final de um bom romance propõe apenas a suspensão da espera comum, a transformação do tempo gasto na leitura em memória. Assim, se um romance abre muitas portas ou janelas durante o percurso, deve ter ao menos uma porta ou janela final que se comunica coerentemente com tudo o que se criou durante a leitura. Esta é a contrapartida que o leitor oferece à espera proporcionada pelo autor: um lugar na memória, onde a criatividade do escritor será eternizada. A espera se perpetua como lembrança, e o casal leitor/escritor não se desfará enquanto a voz do narrador não for esquecida.

Acabo de voltar das férias, quando li Middlesex, de Jeffrey Eugenides, com grande entusiasmo. Logo no início do livro, que conta a história de um hermafrodita, ficamos sabendo que ao narrador foi atribuído o sexo feminino, mas que ela/ele já havia decidido trocar de sexo, assumindo a identidade de gênero masculino. No transcorrer da leitura somos atraídos pela originalidade da voz narrativa, pela história pregressa da família de imigrantes gregos radicados nos Estados Unidos, pela riqueza das muitas vidas que desembocarão na do protagonista que nos guia. Em Middlesex o ponto final aparece no começo, mas o que conta é o meio. O fundamental não é mais a abertura ou o desfecho do livro, mas as muitas outras revelações que aparecerão no caminho.

Para manter o interesse do leitor, o escritor o mantém esperando, e, para tal, opera com idas e vindas no tempo, abre assuntos que ficam inconclusos, enquanto apresenta outras vozes e vidas. A cada janela aberta durante o texto, uma questão fica guardada na mente dos leitores e, mesmo que não lembremos que ela está lá, ela nos prende e guia enquanto seguimos outras trilhas abertas pelo escritor.

Outro bom exemplo é a série Minha Luta, do norueguês Karl Ove Knausgård, que li parcialmente. Nesse grande romance de seis volumes, Knausgård transforma a sua vida absolutamente comum em uma narrativa quase de suspense, manipulando o tempo e a ansiedade do leitor. No início do quarto volume, Uma temporada no escuro, por exemplo, sabemos que o tema do livro é a busca do narrador, aos dezenove anos, por sua iniciação sexual. O livro começa com Knausgård contando sobre quando se muda para o interior da Noruega e ocupa o primeiro posto profissional de sua vida, como professor de um pequeno colégio, numa cidade próxima aos lindos fiordes nórdicos.

A narrativa acompanha a ida de Knausgård para um lugarejo onde nada acontece, mas para o qual o autor parte em busca de algo que lhe é vital. Logo nas primeiras páginas, o leitor toma conhecimento de que, antes de empreender a viagem, o garoto despediu-se de uma namorada, com quem ainda não havia transado, e de uma amiga, até mais amorosa com ele do que a sua companheira. No ônibus, o narrador vê uma menina bonita, que o olha com curiosidade. E nesse pequeno movimento planta várias dúvidas que acompanharão o leitor. O que acontecerá com os dois “amores” que ele deixou para trás? No que vai dar aquela troca de olhares durante a viagem de ônibus, que se encerra com a menina risonha descendo antes? Se observarmos, os acontecimentos que se sucederão no transcorrer do livro não são numerosos tampouco especiais. Mas o escritor cria e manipula pequenas esperas, que talvez nem ele saiba dizer aonde vão dar, ou que intensidade terão. Com elas, ao mesmo tempo prende o leitor e o guia em sua narrativa.

Há um parágrafo de Uma temporada no escuro que me parece emblemático. Termino com ele para que o leitor entenda o que quis dizer, desajeitadamente, a respeito do valor da espera, um presente que a literatura nos dá; talvez repondo um valor que perdemos a cada dia na vida real.

O que significava isso tudo? O que estávamos fazendo? Será que esperávamos por alguma coisa? Nesse caso, por que éramos tão pacientes? Nunca acontecia nada! Nada de novo aparecia! O que acontecia era sempre mais do mesmo! Num dia sim e no outro também! Na chuva e no vento, na neve e no gelo, no sol e na tempestade, fazíamos sempre a mesma coisa. Ficávamos sabendo de uma coisa qualquer, íamos até lá, voltávamos, sentávamos no quarto de Jan Vidar, ficávamos sabendo de uma outra coisa qualquer, tomávamos o ônibus, pegávamos nossas bicicletas, íamos a pé, nos sentávamos no quarto. Se fosse verão, tomávamos banho de mar. Fim.

O que significava isso tudo?

Nós dois éramos amigos, nada mais.

Quanto à espera, essa era a nossa vida.”

* * * * *

Luiz Schwarcz é editor da Companhia das Letras e autor de Linguagem de sinais, entre outros. Escreve pra o blog uma coluna quinzenal.

Luiz Schwarcz

Luiz Schwarcz é editor da Companhia das Letras e autor de Linguagem de sinais, O ar que me falta, entre outros.

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