Por Luiz Schwarcz
Ilustração: Alceu Chiesorin Nunes
A brincadeira que fiz no fim da minha participação num encontro de editores da Penguin, quando perguntei se no ano seguinte poderíamos falar também sobre livros, ecoa o conflito que caracteriza a vida do editor, muitas vezes sobrecarregada por questões comerciais ou financeiras. Quando percebo o quanto os números tomam conta do meu dia a dia, e quantos exercem a profissão sem o mesmo apreço pelos momentos de leitura, sinto o senso crítico aflorar e repenso se gosto mesmo da profissão que escolhi. Em momentos de inconformismo já me peguei falando comigo mesmo, criticando colegas com a frase mais devastadora que posso dedicar a um profissional do mercado editorial: “Ele(a) não gosta de livros”. Nesses casos, sinto que essas pessoas, que acabam por merecer o meu desprezo, trabalham com livros pelo seu glamour, mas não se encantam com seu conteúdo. É comum nessas ocasiões que eu continue meu diálogo interior raivoso, impensadamente, em tom cada vez mais acusatório: “fulano não é de fato um editor, é um simples comerciante!”.
Porém nada poderia ser mais preconceituoso do que essa frase, da qual eu deveria me envergonhar. Só o cansaço oriundo de uma rotina difícil, principalmente em tempos sombrios, justifica que ela seja sequer pensada. Afinal, o tino comercial que há em cada editor é absolutamente fundamental para o bom exercício do trabalho no ramo e dignifica nosso cotidiano. O fato de a carreira de editor possuir um lado intelectual, de estarmos nas bordas da arte ou acompanhando o labor criativo de escritores, não permite que nos esqueçamos de que nossa função primordial é intermediar autores e leitores, e que essa intermediação ocorre por meio do mercado, do comércio, todos os espaços distantes do universo artístico.
Assim, é interessante notar que enquanto há editores que se destacaram por serem leitores extraordinários, outros serão lembrados por suas inovações mercadológicas, dedicando-se pouco aos textos ou ao acompanhamento da criação autoral. E não há problema algum em nenhuma das duas escolhas.
Esse é o caso de um dos maiores heróis do mercado editorial de todos os tempos chamado Allen Lane, o criador da Penguin e grande responsável pela existência dos livros de bolso como são conhecidos hoje. Lane era conhecido como um homem que lia muito pouco e quase nunca chegava ao final dos livros que começava. Não tinha interesse em outras áreas artísticas, era indeciso e pouco ligado em números ou relatórios gerenciais. No The Book of Penguin (editado institucionalmente em 2009 pela empresa que Lane fundou), seu criador aparece como um homem de enorme energia, obcecado, predestinado e detalhista. Era muito mais um empreendedor do que um intelectual, mas sabia se cercar de pessoas brilhantes na área editorial. Teve a ideia de criar a Penguin em 1935, supostamente numa estação ferroviária, à espera de um trem que atrasou. Interessado em comprar alguma coisa simples para ler e matar o tempo, percebeu que não havia livros baratos nos quiosques. Então, por que não criar uma linha de publicações com este fim?
Ao voltar a sua cidade, propôs um brainstorming no seu escritório em busca de um símbolo para a marca de livros baratos que queria lançar, dizendo de saída que preferia nomes de pássaros. Foi a sua secretária quem perguntou, de supetão: “Por que não um pinguim?”. Lane ouviu a sugestão e imediatamente enviou um funcionário do departamento de arte para o zoológico, a fim de que rabiscasse sketches do simpático animalzinho alvinegro.
Por trás de tudo isso estava a convicção de Lane de que no período entre guerras as pessoas gostariam de comprar livros baratos, que coubessem em seus bolsos e que tivessem um design moderno e atraente. Para ele estava claro que precisaria de uma marca forte, seguindo os caminhos da sociedade industrial do início do século XX. Allen Lane possuía concepções modernas de marketing, muito adiante do mercado de sua época.
Ele não foi o criador do livro de bolso, já existente desde o século XIX, mas o idealizador de seu formato contemporâneo -- que não devia custar mais do que um maço de cigarros e atingir um grande número de leitores, mas sempre com qualidade e substância. Para que o modelo desse certo, ele teria de conseguir comprar por um preço baixo os direitos de republicação dos livros já lançados em capa dura; isto é, pagando um royalty bem inferior ao da primeira edição. Mesmo assim, com o preço baixíssimo que ele buscava alcançar, o breakeven para que as edições fossem lucrativas era muito alto para a época, ou seja, a Penguin só teria lucro a partir de um mínimo de 18.000 exemplares vendidos. Todos consideraram a aposta inviável, menos Lane. A reação inicial do mercado foi negativa, com editores, livreiros e autores se posicionando contra o barateamento dos livros. A voz discordante foi, como sempre, a de George Orwell, que disse: “Esses livros possuem um grande valor para o preço de 6 pence. Se os outros editores fossem espertos, se juntariam para enfrentá-los e derrubá-los”.
A surpresa foi grande quando o breakeven foi superado logo de cara, com uma compra de 63.500 exemplares por parte de uma grande rede de livrarias. O primeiro livro da Penguin foi Ariel, de André Maurois. Em 1937 passaram a fazer parte do projeto as obras de não ficção, através do selo Pelican, e mais à frente a linha infantil, pelo selo Puffin. No mundo do pós-guerra, o interesse por educação a preços acessíveis cresceu muito, como Lane previra, e assim sua aposta continuou dando certo e passou a se multiplicar. A conquista do mercado mundial em língua inglesa não tardou, tendo Lane mudado os escritórios da Penguin para próximo do aeroporto de Heathrow, até por conveniência operacional.
Na história de Allen Lane e da Penguin podemos ver como grandes editores por vezes são mais inovadores empresariais ou culturais do que companheiros artísticos dos autores. Caio Graco Prado, com quem aprendi o meu ofício, era parecido com Lane, embora fosse também um editor, que, ao contrário do criador da Penguin, ocupava-se sobremaneira com a leitura. Como Lane, Caio tinha um instinto empreendedor aguçado, em seu caso particularmente aliado ao interesse pela participação política. Sua vida de editor e o empenho pessoal devotado à abertura democrática brasileira caminharam juntos. Numa reunião da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência), nos tempos da ditadura, Caio sacou que havia um público jovem de peso ao lado dos intelectuais, o que transformava esse tipo de encontro em uma espécie de manifestação pela abertura democrática. Percebeu, além disso, que esse mesmo público emergente ansiava por leituras acessíveis, devido à lacuna de formação política e cultural existente nos currículos da grande maioria das escolas na época da hegemonia militar. Comprou os direitos de uma coleção intitulada Biblioteca de Iniciación Política, por sugestão de um amigo exilado na Espanha, da qual se originou a Coleção Primeiros Passos. Eu ajudei na confecção final da série brasileira, formando uma dupla com Caio, o verdadeiro empreendedor e inovador. Nesse sentido, encaixo-me mais no caso do editor que atua nos inúmeros detalhes que formam um livro, e menos nas grandes sacadas e inovações que movem o mercado para novos patamares. Eu tinha, é verdade, longas discussões com ele por ocasião das leituras dos livros que compartilhávamos, ou mesmo sobre a confecção dos produtos que fomos criando em dupla. A minha maior especialidade como editor sempre esteve nos infinitos detalhes de texto e no acabamento do livro.
Mas é bom dizer que, ao contrário de Lane, Caio Graco era um profissional que intervinha na redação dos livros. Nossos critérios aos poucos foram se distanciando, e nem sempre líamos os textos com olhares semelhantes. Ainda assim, aprendi com ele a ter o desprendimento de me colocar como leitor privilegiado, como companheiro, comparsa ou cúmplice dos autores, e falar com estes com total sinceridade. É claro que tento dosar a franqueza com certa diplomacia, mas é comum um autor estreante na Companhia estranhar o volume de questões e a forma direta com a qual tento expor minha visão dos textos. Devo ao Caio mais essa lição.
Allen Lane e Caio Graco, cada um a seu modo, e com abrangências diferentes, fizeram o mercado de livros dar saltos e mover montanhas. Outros editores podem se vangloriar de outros feitos, como ajudar o autor a encontrar sua voz, acertar enredos, dar o título correto às criações ficcionais, ou mesmo mudar uma vírgula de lugar -- uma façanha muitas vezes capaz de influenciar o significado de um livro. Com um gesto pequeno, o editor é capaz de agregar sentido à viagem imaginária compartilhada pelo autor e seu leitor, feita de tantos “detalhes tão pequenos de nós dois”.
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Luiz Schwarcz é editor da Companhia das Letras e autor de Linguagem de sinais, entre outros. Escreve pra o blog uma coluna quinzenal.