Por Luiz Schwarcz
Ilustração: Alceu Chiesorin Nunes
Aquela era mais uma tarde de calor escaldante, e a pilha de originais, que deveria diminuir ou até sumir -- para depois voltar a crescer, com a chegada cotidiana de novos pacotes pelo correio —, dava a impressão de permanecer sempre do mesmo tamanho. Efeito do calor ou do cansaço com a tarefa de ler mais e mais manuscritos que nunca paravam de chegar? O editor em sua pequena sala, que ficava nos fundos da gráfica fundada pelo avô, lia o primeiro parágrafo dos livros e passava o lenço na testa. O primeiro parágrafo lhe bastava. Sabia se devia continuar a leitura simplesmente a partir da análise daquelas primeiras linhas. Um parágrafo e o livro em questão podia ser descartado, como o suor que ele extirpava da testa.
O parágrafo acima poderia ser o começo de um romance. Minha primeira tentativa de escrever uma narrativa ficcional longa -- frustrada, como todas que se seguiram -- começava mais ou menos assim. Ou melhor, abria citando uma série de começos de romances fictícios que o suposto editor recebia e rejeitava depois de ler apenas um parágrafo. Talvez nem seja preciso dizer que o romance pretendia ser uma sátira ao mundo editorial. Seu enredo chegaria até a Feira de Frankfurt, para onde o editor desencantado levaria excertos de um falso romance de sua lavra, com resenhas inventadas, listas de mais vendidos fajutas e todo o tipo de lorota -- fruto do seu desgosto com os rumos de sua vida profissional. O trote dava certo: o livro fajuto, idealizado a partir do que estava na moda no mercado editorial da época, era vendido para uma dezena de países, e a partir daí o narrador/editor se via em apuros. Tinha que voltar ao Brasil e de fato escrever um livro, do qual só possuía a ideia e os trechos utilizados para vender os direitos no templo do comércio editorial. E, além do mais, ele era um simples editor, cansado da profissão, e não um escritor de talento.
Esse romance, por graça do meu senso crítico, nunca foi em frente. Mas ao menos serviu de abertura para esta crônica, na qual pretendo falar do começo dos livros, de um punhado de primeiros parágrafos exemplares, que na minha ficção frustrada tentei ironizar.
Já usei este espaço para tratar das páginas em branco e do que viria antes da abertura dos livros (Narrar é tomar decisões — ou uma nova frase para Descartes); ou seja, dos escritores que tentam pensar todo o livro previamente e dos que começam a imaginar o livro só ao escrever. Para qualquer um deles a abertura do livro é vital. Como “antes de qualquer começo há sempre a ideia de começar” -- como diz Edward Said em seu denso e belíssimo livro Beginnings (Columbia University Press, publicado no Brasil pela Ediouro com o título E a história começa) —, a abertura de um livro pode ser considerada sempre um recomeço, o momento através do qual, a partir de laços adquiridos previamente e comuns ao leitor e ao autor, se estabelecem a voz do narrador e sua autoridade.
Amós Oz, em um livro também sem edição brasileira, intitulado The Story Begins, explica que o primeiro parágrafo é onde se instala um contrato entre autor e leitor. Contrato que poderá ser desrespeitado -- e isso acontece em boa parte dos casos -- durante a confecção do texto ou no transcorrer da sua leitura.
Oz diz que a página que receberá as primeiras linhas de um livro é para o escritor como um muro branco sem portas ou janelas. Para ele, começar a contar uma história é como “passar uma cantada numa pessoa desconhecida, que vemos pela primeira vez, sozinha num bar”.
O início de um livro é tão importante que a minha ficção frustrada sobre um editor infeliz tinha de fato alguma base real. Sem dúvida um profissional tarimbado principia avaliando um livro por seu parágrafo de abertura, e é, em muitos casos, capaz de intuir a partir dali se deve continuar. É verdade que alguns inícios podem estar muito aquém do conteúdo total do livro (justificando, aliás, o teor sarcástico que eu pretendia dar à minha ficção). Oz cita o caso de Noites brancas, um conto de Dostoiévski que possui um começo banal ou até sentimental. Ele se pergunta então: será por que a tarefa de começar um livro é tão difícil que alguns autores desistem no meio do esforço? Será por isso que iniciam seus livros sem um parágrafo realmente significativo? “Só Deus sabe”, ele diz, “quantos rascunhos e mais rascunhos vieram antes da frase inicial, tendo sido destruídos, abandonados, rabiscados, amassados, jogados no fogo, na privada, até que finalmente ficou decidido que é isso, agora vai.”
Mas a questão não é tão simples assim. Segundo o escritor israelense temos que ficar atentos: em Noites brancas a narração em primeira pessoa se constrói a partir do ponto de vista de um personagem sentimental, e o começo simplório pode ter sido premeditado, isto é, propositalmente banal, para estabelecer o tom da narrativa.
Nesse sentido, a ideia do contrato entre autor e leitor permanece de pé. A metamorfose, de Kafka, por exemplo, pede um acordo imediato com o narrador, para que entremos no mundo fantástico do autor. Na tradução de Modesto Carone, lemos: “Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso. Estava deitado sobre suas costas duras como couraça e, ao levantar um pouco a cabeça, viu seu ventre abaulado, marrom, dividido por nervuras arqueadas, no topo do qual a coberta, prestes a deslizar de vez, ainda mal se sustinha. Suas numerosas pernas, lastimavelmente finas em comparação com o volume do resto do corpo, tremulavam desamparadas diante dos seus olhos”. Trata-se de um dos começos de livro mais emblemáticos de todos os tempos. Nele, o acordo não se romperá até o final. O escritor checo sempre nos convida para um mundo do qual não podemos sair. Só no ponto final. Mesmo assim, aposto que os leitores dessa fábula fantástica demoraram para deixar o livro e voltar para o seu cotidiano, ou então, ao retornar, não eram mais os mesmos.
Cada um de nós tem guardado na memória os começos de livros que mais nos marcaram. Oz cita vários de sua predileção, mas menciona muito especialmente o parágrafo inicial de A divina comédia, de Dante, que considera a abertura exemplar para todos os livros, ou mesmo a metáfora perfeita para a situação em que se encontra o escritor ao começar a escrever sua obra. “No meio do caminho desta vida me vi perdido numa selva escura, solitário, sem sol e sem saída.”*
Ao pensar nesta crônica, tentei voltar às aberturas de romances que mais me impressionaram, e de cara lembrei de como Albert Camus inicia um dos livros favoritos da minha adolescência: “Hoje minha mãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: ‘Sua mãe falecida. Enterro amanhã, Sentidos pêsames’. Isso não quer dizer nada. Talvez tenha sido ontem”.**
O contrato (existencialista) entre autor e leitor de O estrangeiro se delineia já aí. Nada do passado importa, só o presente!
Meursault, o personagem narrador de Camus, entrou de forma tão impactante em minha vida quanto Gregor Samsa. No entanto, seguindo o raciocínio de Amós Oz, também o contrato proposto nas linhas iniciais dessa obra-prima se quebrará no transcorrer do livro. O passado conta, sim, e a morte da mãe não passa incólume, como o descaso do primeiro parágrafo ou a falta de lágrimas de Meursault no enterro procuravam deixar entrever. Ao parágrafo inicial sucede a descrição do velório e do féretro da falecida, marcando também a presença de um personagem que será importantíssimo no livro: o sol, ou melhor, o incômodo causado pelo calor do sol. Assim, por meio desse laço tênue, que une o enterro (e, por conseguinte, a morte) da mãe ao crime que Meursault irá cometer páginas adiante, o leitor virá a entender que a perda da mãe não é desimportante, como quis mostrar o narrador no parágrafo inicial do livro. É o mesmo calor insuportável do enterro que ofusca a visão e incomoda Meursault na hora do crime. O contrato entre autor e leitor ficará mais claro e será refeito de certa forma perto do final do livro, quando entendemos de onde fala o narrador, ou em que lugar se constrói a narrativa que acabamos de ler. Na situação em que se encontra Meursault, o passado não vale mais nada, e o parágrafo inicial volta a fazer sentido.
Dessa forma, é bom prestar atenção nas aberturas dos livros, como o fazem, para o bem e para o mal, os editores. O começo genial de Anna Kariênina, lembrado por Oz, é também bem interessante. Sem se aprofundar no porquê, o escritor israelense diz que Tolstói contradiz, durante o livro, a frase com que inicia seu romance: “Todas as famílias felizes se parecem entre si, todas as infelizes são infelizes à sua própria maneira”. Esse contrato, que ele chama de filosófico, quebra-se com o andamento do livro.
Entendo que o que Oz quis dizer é que o romance de Tolstói é tão rico que prova que nem na felicidade somos todos iguais. Ou até que a frase poderia ser invertida e iniciar o mesmo romance com a afirmação de que somos iguais na infelicidade e singulares na alegria. Quem sabe?
A mim agradam os começos que já desautorizam ou relativizam o poder do narrador, como o fazem de forma genial Cervantes, Machado de Assis e Laurence Sterne, em Dom Quixote, A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy e Memórias póstumas de Brás Cubas. Neles, o leitor já é avisado que o contrato firmado não é dos mais confiáveis, ou está sendo assinado por um narrador pouco confiável, por diferentes motivos, de quem não compraríamos nem uma caixa de fósforos! Será quebrado na próxima linha, ou até mesmo poucos parágrafos depois. Além dos romances já citados acima, o início de livro que mais marcou minha vida de leitor talvez tenha sido o de O jogo da amarelinha, de Julio Cortázar:
“Encontraria a Maga? Tantas vezes, bastara-me chegar, vindo pela rue de Seine, ao arco que dá para o Quai de Conti, e mal a luz cinza e esverdeada que flutua sobre o rio deixava-me entrever as formas, já sua delgada silhueta se inscrevia no Pont des Arts, por vezes andando de um lado para o outro da ponte, outras vezes imóvel, debruçada sobre o parapeito de ferro, olhando a água. E, então, era muito natural atravessar a rua, subir as escadas da ponte, dar mais alguns passos e aproximar-me da Maga, que sorria sempre, sem surpresa, convencida, como eu também o estava, de que um encontro casual era o menos casual em nossas vidas e de que as pessoas que marcam encontros exatos são as mesmas que precisam de papel com linhas para escrever ou aquelas que começam a apertar pela parte de baixo o tubo de pasta dentifrícia”.***
É assim que o autor argentino começa um romance no qual propõe que o leitor escolha duas ordens possíveis para seguir os capítulos. É quase um convite explícito para encontrar a história de surpresa, sem hora ou lugar marcado, como o faziam, nas ruas de Paris, o narrador Horácio Oliveira e sua misteriosa amiga Maga. Afinal, não é este tipo de encontro, ao acaso, que procuramos ao iniciar qualquer livro?
Notas
* Tradução de Augusto de Campos.
** Tradução de Antônio Quadros (editora Abril Cultural).
*** Tradução de Fernando Castro Ferro (editora Civilização Brasileira).
Ps.: Se vocês, leitores, lembram de outros inícios de livros marcantes que não foram citados neste post, compartilhem conosco aqui nos comentários.
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Luiz Schwarcz é editor da Companhia das Letras e autor de Linguagem de sinais, entre outros. Escreve pra o blog uma coluna quinzenal.