Por Luiz Schwarcz
Ilustração: Alceu Chiesorin Nunes
Do que precisa um escritor para começar um livro? Como se pode imaginar, não há consenso entre os autores mesmo diante de uma pergunta, a princípio, tão banal. Dorothy Parker diria que lhe bastaria uma encomenda. Ela, assim como um escritor que lhe era tão diverso, Louis-Ferdinand Céline, não se acanhavam em dizer que escreviam por dinheiro; aliás, os dois afirmavam detestar o ofício. Ambos se faziam a mesma pergunta: se não por dinheiro, por que alguém escolheria uma profissão tão penosa? Mas será verdade que sentiam mesmo tamanho desprezo pelo que faziam? Nunca saberemos. Num próximo post, veremos que não se pode confiar no que afirmam os escritores, principalmente em suas entrevistas.
A partir de uma encomenda, Dorothy Parker, contista por natureza, dizia passar um bom tempo pensando no conto, por inteiro, para só depois escrevê-lo. Em, talvez, mais uma de suas boutades, afirmava buscar o nome dos personagens na lista telefônica. Acabou confessando, num momento de menor desprezo pela pobre entrevistadora da Paris Review, que seu famoso conto “Big loira” fora provavelmente baseado numa pessoa que conheceu. Logo em seguida apontou sua verve para suas colegas escritoras, que militavam em um campo diferente de literatura: “Para aquelas que escrevem fantasias, diga que não estou em casa”.
Italo Calvino, um escritor menos sociável do que sua obra deixa transparecer, não perdeu a oportunidade de gozar de seu entrevistador — que, aliás, era seu dileto tradutor para o inglês — ao ressaltar que planejava todos os seus livros em detalhe e que principalmente em O castelo dos destinos cruzados não consultou nenhuma carta de tarô para dar sequência à trama.
José Saramago também costumava contar que passava meses — depois de ser tomado, ao acaso, pela ideia de um romance — planejando-o, do começo ao fim. Só começava a escrevê-lo quando o título já estivesse definido, o que aliás é muito raro. No entanto, admitia que fora do curso do enredo, escolhido de antemão, os personagens podiam ditar, eles próprios, ações, falas e pequenas mudanças. Mas não foi isso o que ocorreu no seu livro mais bem-sucedido comercialmente, Ensaio sobre a cegueira.
Os leitores deste blog, com razão, poderão achar que ando com uma certa fixação nesse tema, mas garanto que foi o acaso que me trouxe de volta à cegueira — o mesmo acaso que fez com que os personagens assumissem a condução da trama preconcebida pelo grande escritor português. Segundo me disse Pilar del Río, foram principalmente as mulheres do romance que fizeram com que Saramago mudasse o rumo da história completamente, como nunca havia feito, e numa medida que não voltaria jamais. Vejamos o que o autor registrou em seus Cadernos de Lanzarote enquanto elaborava o Ensaio: “Passadas duas horas achei que devia parar, os cegos do relato resistiam a deixar-se guiar onde a mim mais me convinha. Ora, quando tal sucede, sejam as personagens cegas ou videntes, o truque é fingir que nos esquecemos delas, dar-lhes tempo a que se creiam livres, para que no dia seguinte, desprevenidas, lhes deitarmos outra vez a mão, e assim por diante, a liberdade final da personagem se faz de sucessivas e provisórias prisões e liberdade”. Nesse caso, as liberdades talvez acabaram sendo maiores do que as prisões. Ao colocar o ponto final no livro, Saramago, com sua peculiar ambiguidade, afirmou que “da ideia original havia sobrado tudo, e quase nada”. Os personagens, ainda segundo Saramago, clamaram por humanidade durante a feitura do livro: “Levei demasiado tempo para perceber que meus cegos podiam passar sem nome, mas não podiam viver sem humanidade”.
Se isso acontece com escritores que procuram planejar em detalhe seus livros, podemos imaginar o que ocorre com outros que se sentam à escrivaninha apenas com uma intuição, ou com um personagem que aparece até antes da história que lhe caberá. John Cheever garantia trabalhar assim. E.M. Forster ainda mais.
O escritor de Passagem para a Índia é citado por Saul Bellow — na entrevista que o norte-americano concedeu para a Paris Review — e teria afirmado: “Como posso saber o que penso enquanto não escrevo”.
Bellow usava a frase de Forster para explicar que, ao escrever, libertava o comentarista que havia dentro de si, para o qual precisava preparar o terreno. Só assim o “comentarista primitivo”, que vivia guardado em sua mente, se lembraria de cores, sapatos, falas, ou de palavras, que talvez nunca tenha visto ou ouvido.
Assim, penso que o passado serve de sombra ao escritor — tanto o passado armazenado na memória, como o passado personificado pela frase recém-escrita no papel ou na tela, e que clama, com certa independência, por continuação. Hemingway explicou que, muitas vezes, uma história se faz no caminho do livro, onde “tudo muda, tudo se move”. Ricardo Piglia também é dessa opinião. Em seus diários, parcialmente publicados pela revista Piauí, ele escreveu: “Como saber qual a melhor dentre todas as possíveis histórias que se apresentam enquanto estamos no ato de narrar? Trata-se sempre de tomar decisões, narrar é tomar decisões. Nunca sei como vai ser a história enquanto não a escrevo. E enquanto a escrevo deixo-me levar pela intuição e pelo ritmo da prosa”.
Anos atrás escrevi contos que hoje renego e que possuíam conteúdo memorialístico acentuado. Em um deles, o narrador lembra-se de quando assistia, sentado no chão, às aulas de história da pintura que sua mãe promovia, na sala de jantar de sua casa, para um grupo de amigas. A professora tinha uma perna amputada, que atraía a atenção do menino-narrador, sempre que este espiava embaixo da mesa e via um número de pernas ímpar. Eu de fato assistia a essas aulas, e de fato me sentava ora no colo da minha mãe, ora no chão. Também havia, de fato, uma professora de arte, com forte sotaque italiano, e uma perna a menos. Teria eu, de fato, notado, tantas vezes, a perna faltante da professora debaixo da mesa, a ponto de me marcar com o fato e me lembrar dele tantos anos depois? Ou me recordei apenas pela vaidade da narrativa, por ser a imagem guardada na memória propícia à literatura, ao momento do conto em questão, no qual eu buscava configurar o personagem como um menino solitário, um filho único, um número ímpar?
Mais uma vez a resposta fica em aberto. Sei apenas que se Descartes tivesse sido um ficcionista, e não um filósofo, a frase que ficaria para a história poderia ter sido “Lembro, logo escrevo”, ou melhor, “Escrevo, logo penso”.
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Luiz Schwarcz é editor da Companhia das Letras e autor de Linguagem de sinais, entre outros. Escreve pra o blog uma coluna semanal sobre livros e o trabalho editorial.