O infinito, só mais uma vez

02/03/2016

Por Luiz Schwarcz

luiz-manguel

Ilustração: Alceu Chiesorin Nunes

livre42Queridos leitores, antes de redigir meu último post, escrevi no ano passado para Alberto Manguel e para Jorge Schwartz tentando averiguar se estava falando uma grande bobagem a respeito da obra de Jorge Luis Borges. A resposta de Alberto Manguel chegou muito tempo após o envio do meu texto para o blog. Achei tão boa a carta que pedi autorização deste para publicá-la, deixando meu texto inicial sem novas alterações ou complementos. Vejam abaixo. Aproveito para agradecer ao Jorge também pelos esclarecimentos preciosos.

 

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Querido Alberto, como vai?

E os planos de voltar a morar em Buenos Aires? Quero saber de tudo!

Venho escrevendo para nosso blog uma pequena série de artigos sobre o ofício do editor, mais precisamente sobre a filosofia da editoração. Batizei a série de “Livre-editar”, referência à expressão “livre-pensar”.

Por ora, publiquei apenas um texto, embora já tenha escrito cinco. Planejo escrever outro, sobre a página em branco e a progressão infinita da escrita, de como uma frase se encadeia necessariamente com a anterior, não importando muito quais eram os planos prévios do autor.

E me deparei com uma questão que talvez somente você possa resolver para mim. Responda quando puder, sem pressa.

Você poderia me dizer como imagina que a cegueira, o não encarar uma página, ou reler a última frase e ter que memorizar as duas — uma página em branco e a última frase de um poema ou de um conto —, influenciaram a obra de Borges? Seria correto afirmar que suas obras-primas foram escritas quando ele podia fazê-lo fisicamente, sem se limitar a ditá-las? Antes de ficar completamente cego?

Estou relendo com enorme prazer grande parte do que você escreveu sobre ele. A noção do Aleph (o lugar de todos os lugares) como sendo mais importante que o labirinto é brilhante, e me ajudou muito.

Agradecer-lhe-ei imensamente se puder me dizer qualquer coisa sobre o assunto, mesmo se considerar isso uma grande tolice, quando puder. Eu adoraria conhecer sua opinião.

Com carinho e os votos de um feliz Ano Novo para você e para o Craig. (Estou muito contente com os novos rumos de sua vida, e por saber que você será parte das comemorações do aniversário de nossa editora no ano que vem).

Luiz

 

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Querido Luiz,

Sua pergunta é muito importante.

Conheci Borges quando ele já estava cego, como você sabe. Ele me disse que ainda podia escrever poesia porque os poemas vinham a ele como uma melodia musical, à qual então acrescentava palavras, o que lhe permitia guardar o poema inteiro em sua mente, ditando-o quando estivesse finalizado.

Escrever prosa, porém, era diferente: ele afirmou (era o início dos anos 1960) que jamais voltaria a escrever prosa, porque para isto “é preciso enxergar sua mão escrevendo”. Borges disse que podemos decorar um poema inteiro, mas não um romance: lemos um romance e nos recordamos de umas poucas cenas, alguns parágrafos, ou mesmo frases, jamais de tudo. O poema era para Borges uma entidade individual; o romance (e talvez o conto), uma massa de fragmentos, trechos, episódios que somente podiam ser vistos como um todo. Sendo cego, para ele não havia página em branco, apenas um texto musical completamente acabado em sua visão mental, ou fragmentos esparsos e peças que ele não se julgava capaz de reunir novamente de forma coerente, sequencial.

No entanto, passados alguns anos, ele sentiu que tinha que escrever as histórias que estavam vindo a ele como argumentos e anedotas, as histórias que se tornariam O informe de Brodie. Assim, solicitou-me que lesse para ele as histórias que considerava obras-primas, para sentir como funcionavam, como haviam sido construídas, como um mestre-construtor reaprendendo o seu ofício. E também aqui não havia página em branco, mas somente parágrafos construídos em sua mente, que deviam ser ditados um a um e lidos para ele vezes sem fim, até que considerasse estar perfeito. Esse era o método que ele utilizara no início de sua vida, quando começou a dar aulas: ele ensaiava lendo as aulas em voz alta para si (ou para sua mãe), com as pausas e mudanças de tom, como um ator praticando suas falas.

Sim, penso que ele soube que havia escrito suas obras-primas antes de ficar cego. Confira na Autobiografia dele. Na última página ele menciona algo assim.

Se puder te ajudar mais, me diga. Neste exato momento estou atulhado com um milhão de coisas, pra não falar da reinvenção da Biblioteca Nacional.

Com muito afeto,

Alberto

Tradução de Carlos Alberto Bárbaro.

 

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Luiz Schwarcz é editor da Companhia das Letras e autor de Linguagem de sinais, entre outros. Escreve pra o blog uma coluna semanal sobre livros e o trabalho editorial.

Luiz Schwarcz

Luiz Schwarcz é editor da Companhia das Letras e autor de Linguagem de sinais, O ar que me falta, entre outros.

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