O infinito está nos livros — ou quem se dispõe a contar grãos de areia?

24/02/2016

Por Luiz Schwarcz

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Ilustração: Alceu Chiesorin Nunes

A coluna Livre Editar agora é semanal.

livre42E se no mundo todos procurassem para sempre a expressão mais perfeita? Como seria se a vida fosse comandada pela literatura e não pela política; se o conflito a ser administrado socialmente fosse um conflito entre formas de expressão e não entre expressões dos múltiplos e contraditórios interesses individuais? Essa é a lição ética à qual me referi no meu último post, e que me levou, desde então, a tantas outras dúvidas. Depois que escrevi sobre a tal busca incessante, não parei de pensar em suas decorrências. Aqui elenco algumas coisas que me passaram pela cabeça após ter escrito os primeiros textos desta série. Tudo sempre em forma de rascunho, escudado pela volatilidade de um blog, que vive nas nuvens — quando um post é publicado, falamos que ele sobe para o blog em vez de descer para a página a ser impressa. Talvez seja por isso que nos blogs o certo dura tão pouco. As certezas sobem e se desmancham no ar. Assim, para os que continuam achando, com razão, que tudo que tenho escrito soa muito etéreo, ou raso, eu só posso me desculpar via Marshall McLuhan; isto é apenas um blog, caros amigos, a culpa não é só minha, afinal: “Os meios fazem os fins!”, ou ainda : “O meio é a mensagem”.

Chegando ao ponto: a insatisfação imanente à literatura, sobre a qual já escrevi a respeito — o que garante que a busca da expressão perfeita seja incessante —, talvez seja o x da questão. Como num círculo vicioso estamos de volta ao infinito e — me desculpem os físicos — o infinito é também uma categoria literária por natureza. Penso aqui a partir do ponto de vista de um editor, e não de um crítico literário, que não sou. Assim o infinito que marca a literatura tem origem na página em branco, aquela que o escritor olha ao começar a escrever. Ela é branca na tela ou no papel, até ser preenchida, até o escritor nela despejar seus sonhos, como disse Faulkner. Quando completa será substituída por outra branca, e assim por diante, por outra branca, outra branca, outra igual...

Pronto para escrever, o escritor contempla, no vazio, além de si mesmo — como explicou Simenon —, o inesperado, ou um pedaço do infinito. Pretendo falar em outra ocasião do quanto é difícil planejar o que será escrito e o tanto de imprevisível que surge ao movimentarmos nossos dedos para escrever. Fica para outro dia, por hoje nos basta o infinito.

Em No bosque do espelho, ao comentar a obra de Jorge Luis Borges, Alberto Manguel menciona um interessante comentário de Calois e Matilde. Estes últimos observam que, muito mais do que a ideia do labirinto, o aleph — local onde se encontram todos os locais do mundo — está no centro da obra do grande escritor argentino. Um homem que é todos os homens ao mesmo tempo, um ser e um lugar eternos; é isso o que, em minha opinião, buscam os escritores.

Mas agora, infelizmente, vem a má notícia: essa busca não traz felicidade. Por isso mesmo continuamos, lendo e escrevendo, sem cessar. Segundo Borges, Dante escreveu a Divina comédia para estar por alguns instantes com Beatriz. Ele próprio, Borges, escreveu O aleph para oferecê-lo a Estela Canto, cujo amor logo mais perdeu. Num outro livro o escritor cego, citando Heráclito, escreveu: “Eu que fui tantos homens, jamais fui aquele, em cujo abraço Matilde Urbach desmaiou”.

Dois discípulos de Borges tematizaram em seus livros o infinito como eixo central da literatura, e o fizeram de maneira magistral. Italo Calvino escreveu uma obra— Se um viajante numa noite de inverno — na qual o fim de cada capítulo leva sempre a um novo início. No centro da história estão dois leitores, e, como não poderia deixar de ser, um amor. Georges Perec situa A vida, modo de usar — uma das obras das quais mais me orgulho de ter publicado — num prédio sem fachada, ou com uma fachada difusa, no qual, em cada apartamento, abre-se uma história que leva a outra, e a mais outra, numa espiral sem fim. O romance é composto segundo uma estrutura matemática que não se realiza plenamente. A vida, modo de usar reproduz uma equação baseada em quadrados de 10 x 10, que deveriam resultar em cem capítulos. Perec, propositalmente, escreveu apenas 99. Para ele, a falta, ou a falha, é que leva ao infinito. O que há de mais humano nos homens, a imperfeição, é o que garante o capítulo que sempre resta por escrever. É assim também com a literatura que cresce como uma incomensurável família: as obras de Calvino e Perec nascem claramente de Borges, cujas narrativas nascem de Henry James, cujos contos nascem de Edgar Allan Poe...

Quando essas ideias me vieram à cabeça fiquei pensando que, por coincidência, o pilar do qual se originam minhas reflexões sobre o infinito na literatura é, justamente, um escritor cego, que em parte de sua vida teve que escrever imaginando uma página em branco, guardando o caminho para o infinito só em sua mente. Sem enxergar ele ditava, não escrevia. Não podia ligar os pontos, olhar para o passado da frase recém-escrita, em busca do seu aleph, o local onde se encontram todos os locais. Teria essa circunstância condicionado Borges a escrever mais poesia no fim da vida? A poesia que justamente busca o infinito no centro da página, ou no âmago da frase, ou na essência de cada palavra, e menos nas páginas que vêm a seguir? Com dificuldade de memorizar teria o tema do infinito dado mais lugar às memórias afetivas, ao temor da morte nos poemas maduros de Borges? Os estudiosos de sua obra podem responder melhor que eu. De qualquer forma, sei que os mais famosos livros de contos de Borges foram escritos antes da cegueira profunda, quando ele provavelmente ainda podia olhar para o papel em branco, aquele que trazia o texto incompleto, recém-escrito.

Se há regras em literatura — e eu creio que não há —, os gênios estão aqui para desmenti-las. Dessa forma, mesmo que eu esteja correto em pensar que a cegueira levou o escritor argentino mais na direção da poesia — e esta fez com que o mago dos labirintos olhasse mais para o passado e contemplasse menos o futuro com suas infinitas possibilidades —, ela não impediu que Borges escrevesse um livro de contos importante em que há ao menos um conto seminal que dá nome à coletânea. O livro de areia foi publicado com o autor em estado de profunda cegueira, e de certa forma sob encomenda da editora Emece, que queria oito contos inéditos do escritor argentino para um novo livro. Recebeu treze. Não consegui descobrir se todos foram escritos na mesma época da encomenda, mas alguns deles com certeza sim.

No conto que dá título à coletânea, um vendedor de bíblias bate na porta da casa do narrador — claramente o próprio Borges — e lhe oferece todo tipo de bíblia antiga. Já tendo um número grande de exemplares em sua biblioteca, Borges agradece. Acaba, porém, cedendo e ficando com um livro, também sagrado, escrito num tempo desconhecido e adquirido pelo vendedor “nos confins de Bikanir”. O pagamento se dá em dinheiro, mas também a partir da troca por uma das bíblias do comprador. O estranho livro adquirido por Borges teria sido propriedade de um homem que não sabia ler e que o teria batizado de O livro de areia pelo fato de conter páginas infinitas. Trata-se de um livro sem começo nem fim. Ao manuseá-lo, o narrador comprova que é impossível abrir as primeiras páginas, sem que milhares de outras surjam, entre a capa e a abertura, impossibilitando que a leitura comece do início ou chegue ao fim. O mesmo se dá com o final, que com a incessante interposição de novas páginas se torna inalcançável. Assim, a convivência com O livro de areia torna-se angustiante. O Borges, personagem, já aposentado de seu cargo de chefe da Biblioteca Nacional — posto que de fato exerceu —, um dia propositalmente esquece o tal livro em meio às estantes da enorme Biblioteca da rua México, para onde, diz ele no final do conto, não pretende mais voltar.

Com essa conclusão, será que Borges explica, no último conto de sua última coletânea, por que parou de escrever contos? Será que o infinito angustiava mais ao escritor cego do que ao que ainda podia enxergar? De qualquer forma, a história de um livro sem começo nem fim é o que encerra O livro de areia.

Talvez Borges só quisesse nos mostrar que ainda guardava as páginas brancas na memória, que era capaz de tematizá-las, de voltar ao seu aleph, ou que mesmo cego se dispunha a falar dos que saem por aí a contar os grãos de areia.

Como sempre, não sei as respostas às minhas próprias indagações, sei apenas que O livro de areia é um conto magistral.

A continuar...

 

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Luiz Schwarcz é editor da Companhia das Letras e autor de Linguagem de sinais, entre outros. Escreve pra o blog uma coluna semanal sobre livros e o trabalho editorial.

Luiz Schwarcz

Luiz Schwarcz é editor da Companhia das Letras e autor de Linguagem de sinais, O ar que me falta, entre outros.

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