Os donos do tempo - ou o silêncio e a fúria

10/02/2016

luiz

Ilustração: Alceu Chiesorin Nunes

Por Luiz Schwarcz

livre42Numa entrevista memorável à Paris Review — à qual voltarei seguidamente nestes textos —, William Faulkner compara a profissão de escritor à de roteirista, dando sempre vantagem sensível à primeira. Estendendo a comparação da literatura com a música, e mesmo aceitando esta última como expressão mais natural da natureza humana, Faulkner reafirma também sua clara preferência para com as palavras como meio de expressão: “Prefiro o silêncio ao som, e a imagem produzida por palavras transcorre em silêncio. Isto é, o estrondo e a música da prosa se processam em silêncio”.

No ótimo Uma história da ópera — os primeiros quatrocentos anos, Carolyn Abbate e Roger Parker nos mostram como o pacto que o compositor e o espectador de ópera celebram é, desde o princípio, irrealista. É bobagem criticar a ópera por seu conteúdo implausível. Quando nos envolvemos com a Violetta, de La traviata, ou com a Brunilde, de O anel dos Nibelungos, entramos numa dupla fantasia, irrealista por natureza, já que, além da representação, a vida não transcorre por meio do canto. Ao cantar uma história, quebra-se qualquer possibilidade de transferência natural ou naturalista. O espectador sabe o tempo todo que assiste a algo que nunca existiu, não se colocando plenamente na pele dos personagens, pelo simples fato de que ele próprio não cantaria segundos antes de morrer, antes de envenenar seu rival, ou até mesmo para declarar seu amor eterno à mulher ou ao homem de sua vida — ainda mais na frente de um bando de outros personagens, um maestro e dezenas de músicos de uma orquestra.

Os que criticam a literatura de cunho realista ou naturalista deveriam pensar mais na frase de Faulkner. A vida também não transcorre em silêncio. Essa é uma das armas naturalmente irrealistas da ficção, o campo no qual a imaginação do autor e a do leitor se encontram. Talvez se possa até dizer que a literatura nada mais é do que o encontro de dois silêncios, separados apenas pelo tempo  o do escritor e o do leitor. Paradoxalmente, é o silêncio que na literatura facilita o caminho da fúria, não o som. Ao ler um livro somos transportados ao tempo escolhido pelo autor. Nele encontramos emoções sutis e arrebatadas, em graus e nuances que não notaríamos ou absorveríamos senão no silêncio do texto. Além disso, na leitura, muitas vezes o tempo é quebrado por idas e vindas, fluxos de consciência e outros recursos narrativos. Também existem as interrupções proporcionadas pela pontuação e pelos capítulos. Na vida real não há capítulos. Só em nossa imaginação sobre a vida. Ao separarmos a vida em capítulos  coisa que só podemos fazer a posteriori , estamos de certa maneira, todos nós, escritores ou não, fazendo literatura.

Outro ponto importante, e que faz da arte da ficção algo tão diverso do teatro ou do cinema, é que o controle do tempo da leitura não pertence exclusivamente ao autor. Num filme ou num espetáculo dramático, o espectador vai a um local que não foi por ele escolhido, em hora marcada pelos encenadores, e assiste a uma representação em que o espaço para a imaginação é constrangido, na maioria dos casos, pelo caráter realista da obra em questão, pela cara e pelo tom de voz dos atores, pela cor do céu e pelo mobiliário que aparece na tela ou no cenário. Por isso Brecht se preocupou com a possível alienação do espectador, e defendeu um teatro pontuado de comentários críticos, que lembrasse sempre ao espectador que ele não faz parte daquela ação. Há inúmeros narradores “brechtianos” na história da literatura, que encheram seus livros de ironias e lembranças críticas sobre seus próprios personagens. Machado de Assis é um exemplo clássico de um brechtiano pré-Brecht.

Quem sabe seja possível afirmar que a escolha da narração em terceira pessoa seja quase brechtiana por natureza, até quando a narrativa não tem qualquer tipo de conteúdo crítico aparente. A voz em terceira pessoa é sempre distante, mesmo que de forma sutil. Além disso, quando o livro é composto por várias vozes narrativas, o realismo tão temido pelos pós-modernos nasce morto desde a primeira linha. Neste caso, há ainda mais espaço para a acomodação do leitor, que sempre pode escolher com quem se identifica ou não e, assim, reagir imaginativamente diferenciando os personagens de sua estima.

Além disso a pontuação da leitura não é feita só pelas vírgulas ou capítulos, mas, principalmente, pelo fato de que um leitor escolhe quando vai ler um livro, escolhe o local da leitura e arbitra suas próprias interrupções: pontua a leitura com respiros pessoais, onde pode incluir suas elucubrações. Neste sentido, o clamor pós-moderno contra a literatura, que deve mais a Tolstói do que à Virginia Woolf, é uma grande besteira. Todas as influências literárias são válidas, todas as formas de silêncio valem a pena. Elas nunca reproduzirão simplesmente a vida real, sempre superarão a mera fotografia realista. Graças ao bom Deus, aquele mesmo que, como dizem, teria ditado, soprado ou inspirado a Bíblia, e que neste caso terá sido, ou ainda é, antes de mais nada, um grande escritor.

 

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Luiz Schwarcz é editor da Companhia das Letras e autor de Linguagem de sinais, entre outros. Escreve pra o blog uma coluna quinzenal sobre livros e o trabalho editorial.

Luiz Schwarcz

Luiz Schwarcz é editor da Companhia das Letras e autor de Linguagem de sinais, O ar que me falta, entre outros.

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