A mancha e a entrelinha — ou a quem pertence este livro?

15/01/2016

Por Luiz Schwarcz

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Ilustração: DW Ribatski

livre42Não costumamos entender a literatura como um diálogo. Normalmente, quando os profissionais de edição pensam no leitor, acham que necessitam seduzi-lo a comprar o livro para que, em seguida, ele tenha horas agradáveis ou enriquecedoras de entretenimento cultural. O nome do autor é repetido ad nauseam: na capa, na lombada, no frontispício, na página de créditos, por vezes no cabeço e em poucos casos até na epígrafe  quando esta não cita texto de outro escritor , como que para lembrar o leitor, de tantas maneiras, que o livro “tem um só dono”. Nas epígrafes mais convencionais, com citação de um outro livro ou escritor, esta funciona como a exposição da árvore genealógica do autor, mostra de onde o livro vem, ou melhor, discorre de maneira sutil sobre a descendência do escritor  apresenta os antepassados do texto e de seu criador.

A epígrafe, quando é boa ou bem escolhida, comunica-se com o livro; mas quando é mero exercício narcísico, simplesmente dá lustro à biografia do escritor, usualmente estampada na orelha ou nas páginas finais.

O reforço do papel do autor através de todas essas marcas é ato justo, enaltece o trabalho artístico, mas também faz parte da cultura que estabelece a preponderância absoluta do artista na relação com seu leitor  e, em outras artes, com o ouvinte ou espectador. Com isso, ficam marcados no próprio livro os limites de um jogo de poder, ou de posse, disputado silenciosamente pelo escritor e seus leitores. Simbolicamente, durante e depois da leitura, é legítimo perguntar: a quem pertence este livro?

Anseio por saber se há estudos sobre o que faz com que algo brote da memória e da imaginação do artista e migre para as páginas dos livros, outrora manuscritas pelos escritores e hoje formatadas na página em branco da tela dos computadores.

Um dos projetos pessoais que não consegui realizar até hoje é o de ler livros de psicanálise e neurociência sobre a criação artística, ou aqueles que me permitam a compreensão do funcionamento da memória e sua relação com a criação literária. Talvez só com a aposentadoria terei tempo de averiguar se há bibliografia a respeito, o que será de certa forma cruel: só poderei entender o meu ofício quando já o tiver abandonado. Assim, lerei sobre o passado da minha prática de vida como se fosse um aluno do primeiro ano de literatura ou de editoração, como se estivesse voltando aos primeiros dias do meu estágio na Brasiliense  onde entrei sem nada saber acerca de livros, a não ser que os amava e que sem eles não saberia viver.

Enquanto este dia não chega, fico aqui a pensar em outro enigma, também complexo, mas nem tanto. Sem conseguir compreender os mecanismos profundos da psique do escritor que fundamentam a criação literária, coloco-me a pensar na formação da memória de um livro, aquela que ficará guardada com o leitor. Nesse caso, é fácil arriscar a conclusão de que o que se absorve de um texto de ficção depende tanto das profundezas íntimas do escritor quanto das de quem realiza a leitura. Isso porque o texto de ficção desperta recursos imaginativos absolutamente pessoais nos dois momentos, tanto o da escrita quanto o da leitura. Dessa forma, o livro que fica marcado na cabeça de cada leitor é absolutamente singular.

Mas se o nome do autor aparece cravado por todo canto e o livro afinal é construído pelo diálogo deste com seu leitor, onde entraria esse segundo componente? Onde estaria representado, graficamente, o diálogo entre as duas imaginações? Ou ainda, qual é a representação gráfica do embate entre a imaginação do autor e a de seu leitor?

A meu ver, o leitor ocupa todo o espaço em branco de um livro. As bordas de suas páginas internas  em cima, embaixo e nas laterais , além do respiro entre as linhas  são estes os espaços que simbolizam graficamente a presença do leitor. A área em branco, ou aquela que não é ocupada pelo discurso autoral, é quase tão importante num livro quanto aquela manchada pela tinta do texto. É ali que está o leitor. Uma mancha (é assim que chamamos o espaço ocupado pelas letras em uma página) muito opressora, absoluta, é, além de feia, inapropriada, pois indiretamente não reconhece que a propriedade do livro, durante e após a leitura, passa a ser compartilhada. Afirma peremptoriamente que há apenas uma presença no livro, a do autor.

Por essa mesma razão, para mim, o bom livro também deve trazer a página inicial (ou falso rosto) em branco, ou apenas com o nome da obra, para que ao leitor fique aberta a possibilidade de escrever seu nome, colocar sua assinatura como novo dono do texto e, dessa maneira, se tornar vizinho, ou mesmo amante, do autor.

Lembrei-me do que fazíamos com o livro escolar, no qual escrevíamos nosso nome para que este não se perdesse pelos bancos do colégio ou nas mochilas de outros colegas. Será que foi dessa prática que migramos para a assinatura nas páginas de abertura, feitas quando terminamos de ler um livro, antes de guardá-lo na estante? Não sei. Creio, porém, que a assinatura do leitor na abertura dos livros simboliza muitas coisas e marca o diálogo, ou a disputa amorosa, iniciada ali logo na primeira linha de uma ficção e que poderá ser enunciada sempre de infinitas maneiras.

A página em branco, à disposição do leitor para sua eventual assinatura, relembra a página em branco para a qual o autor olha, antes de começar uma nova história. É um espaço delimitado que abriga incontáveis possibilidades, a depender da primeira linha, que pode, por exemplo, começar assim: “Como sempre, naquela manhã o editor acordou cheio de dúvidas...”.

 

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Luiz Schwarcz é editor da Companhia das Letras e autor de Linguagem de sinais, entre outros. Escreve pra o blog uma coluna quinzenal sobre livros e o trabalho editorial.

Luiz Schwarcz

Luiz Schwarcz é editor da Companhia das Letras e autor de Linguagem de sinais, O ar que me falta, entre outros.

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