Livros para entender o golpe militar no Brasil

31/03/2017

"No dia 31 de março, estava em meu gabinete [na Sudene] quando, às 22h30, entrou um auxiliar para informar-me de que ouvira pela Voz da América que uma sublevação militar brotara em Minas Gerais. Engoli o meu travo de humilhação, pensando que seria sempre pelos “irmãos do Norte” que tomaríamos conhecimento do que de importante acontecia entre nós. [...] Fui ver o comandante do IV Exército, general Justino Alves, numa manobra arriscada. Seu comportamento no comando do IV Exército fora de sistemática hostilidade a Arraes. Encontrei-o no melhor humor. Naquele momento, 10 horas da manhã, ele já havia saído de cima do muro, sabia para que lado os ventos da vitória sopravam. Informou-me que prenderia os cabeças se houvesse qualquer alteração da ordem. Em realidade, prenderia arbitrariamente, já no 1º de abril, cerca de mil pessoas que considerou 'suspeitas'.?" 

No trecho acima, retirado de Obra autobiográfica, Celso Furtado conta o que ouviu e viu enquanto se instaurava o golpe militar no Brasil. Entre o dia 31 de março e 1º de abril, teve início um dos períodos mais sombrios da história do nosso país, marcado por repressões, violência e censura. A ditadura militar, que duraria até 1985, mudou os rumos do Brasil e deixou marcas profundas em sua sociedade, e suas histórias continuam a se revelar ainda hoje. Para conhecer mais sobre este período, selecionamos leituras de ficção e não ficção que narram os horrores da ditadura. 

Os fuzis e as flechas, de Rubens Valente

Os fuzis e as flechas é uma investigação jornalística que descreve centenas de mortes de indígenas durante a ditadura militar no Brasil. Durante um ano, o autor entrevistou oitenta pessoas, entre índios, sertanistas, missionários e indigenistas, percorreu 14 mil quilômetros de carro, esteve em dez estados e dez aldeias indígenas do Amazonas, Mato Grosso do Sul e Minas Gerais. Além de se valer de milhares de páginas coletadas em arquivos de Brasília, São Paulo e Rio, o livro traz à tona registros inéditos de erros e omissões que levaram a tragédias sanitárias durante a construção de grandes obras, como a rodovia Transamazônica, que cruzou a Amazônia de leste a oeste.

Lugar nenhum, de Lucas Figueiredo

Junto com Os fuzis e as flechasLugar nenhum faz parte da Coleção Arquivos da Repressão no Brasil. Desde a volta da democracia, em 1985, sucessivas tentativas de abrir os arquivos do Exército, da Marinha e da Aeronáutica foram feitas pelo Ministério Público e pela Justiça. Mas a resposta dos militares era sempre a mesma: foram destruídos e não há vestígio deles em nenhum setor das Forças Armadas. Lucas Figueiredo teve acesso a um conjunto de microfilmes do Cenimar - o temido Centro de Informações da Marinha - que não deixam dúvida: os militares sempre souberam mais do que revelaram. Desde o início, tinham registros precisos sobre o destino de presos políticos tidos como “desaparecidos”, mas na realidade mortos pela repressão. Ainda existem registros desconhecidos sobre o período? Por que os militares insistem em ocultar seus arquivos, mesmo passados trinta anos do fim do regime ditatorial? Por que, de Sarney a Dilma, nenhum presidente civil do pós-ditadura obrigou a Marinha, a Aeronáutica e o Exército a abrir seus arquivos secretos? O que esse impasse diz sobre o poder das Forças Armadas e a democracia no Brasil de hoje? Eis algumas perguntas que este livro procura responder. 

Ainda estou aqui, de Marcelo Rubens Paiva

Em 1971, o deputado Rubens Paiva, pai de Marcelo Rubens Paiva, foi preso por agentes da ditadura, torturado e morto. Eunice Paiva, casada com o deputado, teve que criar seus filhos sozinhos desde então, sempre à procura do marido desaparecido. Em meio à dor, ela se reinventou. Voltou a estudar, tornou-se advogada, defensora dos direitos indígenas. Nunca chorou na frente das câmeras. Ao falar de Eunice, e de sua última luta, desta vez contra o Alzheimer, Marcelo Rubens Paiva fala também da memória, da infância e do filho. E mergulha num momento negro da história recente brasileira para contar - e tentar entender - o que de fato ocorreu com Rubens Paiva, seu pai, naquele janeiro de 1971.

Antes do golpe, de Ferreira Gullar

Lançado em e-book em 2014 pelo selo Breve Companhia, em Antes do golpe o poeta e ensaísta Ferreira Gullar apresenta sua versão dos fatores históricos que desencadearam no evento que marcaria profundamente a sua geração e a história brasileira no século XX. Tomando a ditadura de Getúlio Vargas como ponto de partida, ele mapeia o cenário político e cultural dos anos que antecederam ao golpe, culminando na sua vivência pessoal enquanto afiliado da UNE nas últimas horas daquele fatídico dia de 1964.

Vozes do golpe, de Moacyr Scliar, Zuenir Ventura e Luis Fernando Verissimo

Em dois contos e um relato documental, Moacyr Scliar, Zuenir Ventura e Luis Fernando Verissimo reconstituem os últimos momentos do governo João Goulart e refazem, com olhos de hoje, a experiência de quem viu surgir e viveu a ditadura. "A mancha", de Verissimo, discute a dupla e paradoxal necessidade de quem viveu na carne a violência do regime autoritário: lembrar os acontecimentos extremos que marcaram aquele período, mas também esquecê-los, abandoná-los no passado para não inviabilizar a vida presente. Em "Um voluntário da pátria", Zuenir Ventura rememora os acontecimentos que precipitaram o golpe militar, como o Comício das Reformas na Central do Brasil, em 13 de março, ao qual compareceram 300 mil pessoas, entre as quais o próprio Zuenir. Já em "Mãe Judia, 1964", Moacyr Scliar cria uma narrativa de ficção sobre o intricado caso psiquiátrico em que um médico recém-formado toma conhecimento do monólogo de uma paciente do hospital em que trabalha. Trata-se de uma senhora judia que enlouqueceu depois do desaparecimento do filho, envolvido com grupos guerrilheiros na Porto Alegre de 1964.

K. - Relatos de uma busca e Os visitantes, de B. Kucinski

Em 1974, a irmã de Bernardo Kucinski, professora de Química na Universidade de São Paulo, é presa pelos militares ao lado do marido e desaparece sem deixar rastros. O pai dela, dono de uma loja no Bom Retiro, inicia então uma busca incansável pela filha e depara com a muralha de silêncio em torno do desaparecimento dos presos políticos. K. narra a história dessa busca. Em Os visitantes, Kucinski resgata os personagens de K. e dá continuidade à essa trágica história, onde em cada capítulo narra a visita de uma pessoa diferente que vai até o autor cobrar satisfações sobre o livro anterior.

De mim já nem se lembra, de Luiz Ruffato

Em De mim já nem se lembra, Luiz Ruffato irá transformar um pequeno episódio familiar em oportunidade para falar de seu país e de sua sociedade. Ao abrir uma pequena caixa encontrada no quarto da mãe falecida, o narrador se depara com um maço de cartas cuidadosamente atadas por um cordel. Escritas pelo irmão, vitimado por um acidente automobilístico, e dirigidas à mãe, essas cinquenta cartas reconstituem um passado: ao mesmo tempo que ilustram as mudanças políticas, econômicas e culturais durante a ditadura militar brasileira, convidam o leitor a espreitar a memória de uma família com “olhos derramando saudades”.

Nuvem negra, de Eliana Cardoso

Nos últimos setenta anos, o Brasil atravessou muitas crises: a transição política após o suicídio de Vargas, o pavor do comunismo nos anos 1960, um golpe militar e a corrupção empresarial e política. Esse é o cenário da história de Lotta, ativista política que acreditava no progresso; de Manfred Mann, homem sensível em busca de seu lugar no mundo; e de Kalu, garota de origem simples que tenta driblar o próprio destino. Com imensa concisão, Eliana Cardoso cria em Nuvem negra uma atmosfera sedutora, povoada de personagens que mostram como é complexa a equação entre amor, família e relações sociais – uma fórmula sobre a qual, muitas vezes, nenhum de nós tem qualquer controle.

Marighellade Mário Magalhães

Carlos Marighella é um importante personagem da história do Brasil. Militante comunista desde a juventude, deputado federal constituinte e fundador do maior grupo armado de oposição à ditadura militar - a Ação Libertadora Nacional -, esse mulato de Salvador era também um profícuo poeta, homem irreverente e brincalhão. Nesta narrativa repleta de revelações, o jornalista Mário Magalhães investiga as várias facetas do biografado. Em ritmo de thriller, reconstitui com realismo desconcertante passagens pela prisão, resistência à tortura, operações de espionagem na Guerra Fria e assaltos da guerrilha a bancos, carros-fortes e trem-pagador. Mas também recupera a célebre prova de física respondida em versos no Ginásio da Bahia e poemas de amor. Do início ao fim, esta biografia de tirar o fôlego apresenta informações inéditas sobre a trajetória de Marighella e o atribulado tempo em que ele viveu.

Brasil: uma biografia, de Heloisa M. Starling e Lilia Moritz Schwarcz

Uma obra para não só compreender o período da ditadura militar, mas também toda a história do Brasil. Em Brasil: uma biografia, Heloisa M. Starling e Lilia Moritz Schwarcz apresentam texto acessível e agradável, vasta documentação original e rica iconografia. Nessa travessia de mais de quinhentos anos, se debruçam não somente sobre a “grande história” mas também sobre o cotidiano, a expressão artística e a cultura, as minorias, os ciclos econômicos e os conflitos sociais (muitas vezes subvertendo as datas e os eventos consagrados pela tradição). No fundo da cena, mantêm ainda diálogo constante com aqueles autores que, antes delas, se lançaram na difícil empreitada de tentar interpretar ou, pelo menos, entender o Brasil. A história que surge dessas páginas é a de um longo processo de embates e avanços sociais inconclusos, em que a construção falhada da cidadania, a herança contraditória da mestiçagem e a violência aparecem como traços persistentes.

 

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