Companhia do bem

06/07/2017


Por Sarah Bonet

Em um dos artigos da série Livre Editar argumentei que um editor não deveria transformar sua editora num partido político ou mesmo tomar decisões de linha editorial de forma unívoca, a partir de suas preferências ou opiniões pessoais. Nesse sentido, pode parecer contraditório o que pretendo fazer neste texto: comemorar a publicação de livros que marcam uma posição (política) em causas importantes e que foram editados por vários dos selos da Companhia das Letras. Quando, há alguns meses, começamos a publicar pequenos livros, que funcionam como manifestos — me refiro aos textos de Chimamanda Ngozi Adichie sobre o feminismo —, apelidei em nossas reuniões editoriais essa linha de "Companhia do bem”. 

Os livros-manifesto Sejamos todos feministas e Para educar crianças feministas, da autora de Americanah, foram seguidos mais recentemente de Sobre a tirania, de Timothy Snyder, no qual o historiador de Yale alerta sobre os riscos da volta de novos regimes autoritários – especialmente quando o esquecimento das lições do século XX se combina ao radicalismo xenófobo dos nossos dias. 

A essa série hoje se junta, com grande orgulho, o livro de memórias de Lázaro Ramos, focado na questão do racismo, que o ator vivenciou desde jovem, e que infelizmente prolifera em nosso país há séculos. Recém-publicado pelo selo Objetiva, Na minha pele, o livro de Lázaro, foi, sem dúvida alguma, um dos livros mais comentados do Grupo Companhia das Letras nos últimos tempos. Não estou falando aqui de outros livros mais extensos, que trazem à luz o Brasil racista ou os bastidores do poder na República, tão falha, que construímos. Neste grupo estaria um número grande de livros publicados pela Companhia das Letras desde o início das nossas atividades, que culminou, recentemente, com a biografia Lima Barreto - Triste visionário, de Lilia Moritz Schwarcz. 

Apesar de ter dito que uma editora não deve servir de plataforma para um só partido, ou para as ideias de seu dono, ainda assim, acho que temos razões para nos sentirmos orgulhosos ao ver causas sociais importantes representadas em livros recentes. 

A abertura que fizemos em nossa linha editorial para livros-manifesto — apontando de maneira mais militante para a defesa dos direitos humanos, para o fim do sexismo e do racismo, e para a luta contra as tiranias — mostrou-se acertada em todos os sentidos. 

Essas são causas que deveriam ser abraçadas, e algumas vezes o são, por vários partidos. Infelizmente, os vários são muito poucos nos dias de hoje. O atual governo brasileiro tem dado as costas a essas causas, assim como o governo americano parece querer dar as costas à liberdade de expressão e a tantos direitos constituídos durante séculos de democracia formal e política naquele país. 

A defesa dos direitos das minorias e o posicionamento contra as tiranias sempre estiveram presentes na reflexão crítica, que embasa os bons livros, das mais diversas matizes ideológicas. Neste sentido, o mercado editorial americano, agora mais do que nunca, foi invadido por livros sobre a direita radical e antidemocrática, sobre o fenômeno Trump e sobre os riscos que este representa para as normas democráticas lá vigentes. Estariam as editoras americanas se partidarizando? Ou estariam simplesmente reagindo ao momento atual, com o senso de oportunidade de seus bons editores, respaldados pelo interesse dos leitores e pela vontade dos autores? 
Eu apostaria na segunda hipótese. Há espaço nas editoras americanas para o pensamento crítico, mas também para publicações que representam visões opostas. Na Companhia das Letras, a publicação dos livros apelidados carinhosamente como parte da “Companhia do bem” não condiciona a editora a uma linha unívoca, embora nossos limites estejam claramente demarcados, deixando de fora livros de conteúdo racista ou que defendam qualquer tipo de preconceito de gênero, ou se manifestem contra grupos sociais, étnicos e políticos. Continuamos publicando textos com os quais, muitas vezes, não concordamos, e assim sempre será, à esquerda e à direita. Hoje no Grupo existem 17 selos, muitos deles destinados a leitores com gostos muito diferentes dos meus. Elas e eles têm hoje meu respeito e compreensão. Nem sempre foi assim. 

Marcar posição no debate atual com livros acessíveis e comoventes, sobre questões usualmente esquecidas pelos que estão no exercício do poder, dá enorme alegria, a qual compartilho com os leitores deste blog com este artigo. 

A pluralidade está viva, seus limites demarcados por uma postura ética, e a “Companhia do bem” é “tudo de bom”. 

P.S. Está a caminho um livro sobre alarmantes casos e formas de assédio contra as mulheres. Espero que venha logo.

Luiz Schwarcz

Luiz Schwarcz é editor da Companhia das Letras e autor de Linguagem de sinais, O ar que me falta, entre outros.

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