A imaginação é um vírus

06/10/2017

Por Eric Novello

Cena de It. 

Stephen King disse numa entrevista para a Rolling Stone, em 2014, que foi um filme assustador que viu quando criança que o levou a escrever histórias de terror. Saber que o filme em questão é Bambi, a animação da Disney que possui uma das sequências mais traumáticas do cinema, me deixou na dúvida se ele estava sendo irônico ou sincero. E quem já leu Sobre a escrita, uma mistura de biografia com manual de escrita do autor, sabe que ele geralmente é as duas coisas ao mesmo tempo.

Curioso pensar que o Bambi que marcou King dessa maneira é adaptação de um livro de mesmo nome, de 1923, escrito por Felix Salten. O sucesso do livro garantiu sua publicação nos Estados Unidos e venda dos direitos para um produtor da MGM. A ideia era fazer um live-action, mas alguém de bom senso percebeu que filmar bichos reais no meio da floresta daria um trabalhão (=gastos), e os direitos da adaptação acabaram parando na mão do Walt Disney.

Fico me perguntando o que diria Salten se soubesse que seu veado ingênuo inspiraria algumas das melhores histórias de terror da literatura. Ciclos imprevisíveis da imaginação. Não sei se devo ao Stephen King minha vontade de escrever, mas com certeza devo a ele o meu gosto pela leitura. Eu o conheci graças às adaptações de seus livros, tão novo que nem sei precisar. Eu, meu pai e minha mãe gostávamos de tirar pelo menos um dia do fim de semana juntos para assistir um filme atrás do outro. A censura dependia deles e somente deles, obviamente, e sou muito grato por filmes de terror, ficção científica e suspense sempre terem sido liberados, com raros momentos de “fecha os olhos durante essa cena, hein, menino?”.

Levei um tempo para descobrir que muitos dos filmes de que eu gostava, como Carrie – A Estranha, eram adaptações da obra de um mesmo autor. Pensando bem, uma menina raivosa com poderes dando o troco nos valentões que a amedrontavam, inclusive numa mãe católica fanática, é uma boa candidata a ser meu Bambi. Só que, em vez de assustado, eu fiquei encantado por ela. Tipo, bora sair para tomar um café e trocar uma ideia, Carrie. Aqui entre nós, quem não gostaria de ter os poderes dela por um dia?

É verdade que a obra do Stephen King nem sempre gera boas adaptações. Contudo, graças a elas, tive meu primeiro contato com o trabalho de diretores do calibre de Stanley Kubrick, John Carpenter, Brian de Palma e David Cronenberg... Nada a reclamar. E, adaptações à parte, sempre teremos os livros.

Eu devia ter perto de quatorze anos quando comecei a ler Stephen King. Passava pelas livrarias e comprava tudo dele que via pela frente, um monte de tijolão. Foi assim que conheci Quatro estações, livro que reúne quatro novelas e que gerou filmes como O Aprendiz, Um sonho de liberdade e o clássico Conta comigo. Foi com o final de "Outono da Inocência - O Corpo”, novela que inspirou Conta comigo, que chorei pela primeira vez com uma leitura e descobri que a literatura era muito mais do que eu havia imaginado até então.

Talvez, e só talvez, as relações entre os personagens do meu livro Ninguém nasce herói se devam ao que senti lendo essa novela uns vinte anos atrás. Talvez, e só talvez, tenha sido assim que Bambi despertou no King essa vontade de dar o troco, de também assustar as pessoas com suas histórias.

Mês passado, no dia 21 de setembro, Stephen King completou 70 anos. Na mesma semana em que It, adaptação do seu best-seller publicado em 1986, bateu a marca de US$ 500 milhões de bilheteria mundial. Um presente e tanto.

Não posso falar pelo King, claro, já que não sei o que se passa na cabeça dele. Mas posso imaginar. E imagino aqui que muito mais importante para ele do que resultados de bilheteria é saber que Pennywise, seu palhaço assassino debochado, será o Bambi de muita gente. E que despertará na cabeça de escritores, diretores e roteiristas a vontade de perpetuar o ciclo infinito da criação de histórias. 

* * * * *

Eric Novello é escritor, tradutor e roteirista com formação no Instituto Brasileiro de Audiovisual. Nasceu no Rio de Janeiro em 1978 e mora em São Paulo desde 2007. É autor de Exorcismos, amores e uma dose de blues(Gutenberg, 2014), A sombra no Sol (Draco, 2012), Neon azul (Draco, 2010) e Histórias da noite carioca (Lamparina, 2004). Em julho, lançou pela Seguinte Ninguém nasce herói

 

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