Escrevendo com Lucia Berlin

09/10/2017

Por Alexandre Rodrigues

Foto: luciaberlin.com 

Para quem, como eu, gosta de tentar entender como livros são criados, é impossível não ficar atordoado com Lucia Berlin.

Morta em 2004, aos 68 anos, foi em vida uma escritora cultuada por poucos e ignorada pelo mercado. Onze anos depois de sua morte, no entanto, metade dos 76 contos que escreveu ao longo de quatro décadas foram reunidos na coletânea Manual da faxineira, livro consagrado no final de 2015 com a indicação para a maioria dos prêmios literários dos Estados Unidos. Os leitores se deram conta de uma grande autora com um forte conjunto de histórias surgida, para eles, da noite para o dia.

O debate entre dar voz aos excluídos x qualidade, que move a academia, eventos literários e o meio editorial, encontra um raro momento de confluência em seus contos. Berlin teve uma vida difícil. Nascida nos Estados Unidos, seu pai se mudou para o Chile por causa de uma proposta de emprego. Mais tarde, no entanto, retornou ao país e passou a morar com parentes no Texas. Casou três vezes, teve quatro filhos, enfrentou o alcoolismo e foi professora primária, telefonista, recepcionista, faxineira e enfermeira antes de obter algum reconhecimento como escritora no final da vida.

As memórias dos tempos de pobreza oferecem um tom único a seus contos, repletos de excluídos, bairros de subúrbio, viagens de ônibus, gente meio louca, pobre, abortos, doentes de hospital, criados com uma prosa que, como afirma Lydia Davis, é elétrica, zumbe e estala quando seus fios vivos se tocam. Não é despropositada a comparação com Raymond Carver, mestre deste tipo de temática. O tom de Lucia Berlin muitas vezes se alterna entre triste e brilhante, arrependido e vívido, melancólico e obscuro e de repente se torna engraçado. Há zero tentativa de buscar a empatia fácil.

Mas como isso se dá? Três ideias:

1 - Construa rapidamente o cenário

Alguns críticos implicam com descrições na abertura de histórias, vistas como uma espécie de muleta para o autor começar a contar algo, mas há algo interessante demais na maneira dela fazer isso. Berlin usa descrições rápidas, quase pinceladas, para situar logo o leitor no cenário. Eis o começo de "Lavanderia Angel’s", conto que abre o livro:

Um índio velho e alto, de calça Levi´s desbotada e um belo cinto zuni. Cabelo branco comprido, amarrado com um fio de lã grená na altura do pescoço. O estranho foi que, durante mais ou menos um ano, aconteceu de irmos à Angel’s sempre na mesma hora.

E logo no começo do ótimo "Manual da faxineira":

Ônibus lento até a Jack London Square. Empregadas domésticas e velhinhas. Sentei ao lado de uma senhora cega que estava lendo um texto em braile, seu dedo deslizando pela página lenta e silenciosamente, linha após linha.”   

Algo ocorre aí: ela estabelece de pronto a cena onde a ação vai começar. De repente, você já está ali dentro e tudo se move feito um carrossel.

2 - Ponha o humor onde ninguém espera

Um exemplo: o começo do conto "Temps perdu".

Trabalho em hospitais há anos e se tem uma coisa que eu aprendi é que quanto mais doentes os pacientes estão menos barulhos eles fazem.

De novo o "Manual da faxineira". Ninguém culpará uma faxineira que reagir irritada à suspeita da patroa de que anda roubando, mas e esta de Lucia Berlin?

Parece que uma madame, sei lá onde, numa reunião de amigas para jogar bridge, espalhou o boato de que a melhor maneira de testar a honestidade de uma faxineira era deixar cinzeirinhos com moedas espalhadas pela casa. A minha solução para isso é sempre acrescentar algumas moedas de um centavo ou até uma de dez.

Mas o melhor resultado vem em "Mordidas de Tigre", o conto mais forte do livro, com uma protagonista cuja mãe se chama Mary e uma tentativa de suicídio:

A sua mãe cortou os pulsos.

Ai, meu Deus’.

Bom, quer dizer, não cortou fundo, nem nada, sabe? Ela escreveu um bilhete suicida falando de como você vive arruinando a vida dela. E assinou como Bloody Mary!

3 - Verdade e ritmo  

“Eu apenas escrevo sobre o que sinto ser verdadeiro”, a autora disse numa de suas raras entrevistas, a dois universitários. “Quando há uma verdade emocional, aquilo segue um ritmo e eu acho que (cria) uma imagem bela porque você você está vendo claramente. Por causa da simplicidade do que vê.”

David Foster Wallace defendia que o objetivo da literatura é se comunicar para além da ironia, estilo e demais artifícios literários. Esta sinceridade almejada por DFW é o que torna Manual da faxineira tão bom. A prosa soa como nada menos do que a verdade, um tom confessional que margeia aquilo que hoje se chama de autoficção e ao mesmo tempo vai muito além, transmitindo impressões como na abertura do conto "Meu jóquei":

"Eu gosto de trabalhar na emergência – pelo menos lá você conhece homens. Homens de verdade, heróis."

E mais adiante:

O primeiro jóquei que conheci se chamava Muñoz. Santo Deus. Eu dispo pessoas o tempo todo e não é nada demais, leva alguns segundos. Muñoz estava lá deitado, inconsciente, um deus asteca em miniatura. As roupas dele eram tão complicadas que era como se eu estivesse realizando um ritual elaborado. E enervante porque demora demais.” 

Outro bom exemplo, no "Manual da faxineira":

Faxineiras roubam, sim. Não as coisas com as quais as pessoas para quem a gente trabalha tanto se preocupam. É o supérfluo que acaba te tentando. Não queremos os trocados nos cinzeirinhos (,..) O que roubo mesmo são os comprimidos para dormir, que guardo para alguma necessidade.

Como não acreditar?

* * * * *

Alexandre Rodrigues é escritor, autor de Veja se você responde essa pergunta (Não Editora).

 

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