Terça-feira trágica

27/08/2018

Crédito das imagens: Alice Sant'Anna (esquerda) e Raquel Cunha/Folhapress (direita)

 

Deixando para trás um semestre duríssimo para o mercado livreiro e para o país, tirei recentemente nove dias de férias. Fui ao Festival de Salzburgo para ouvir música, correr em volta dos lagos, nadar nos canais de água gelada e ler livros que não precisam da minha edição. Poucos dias antes das férias, mas já fora do Brasil, meu grande amigo Rodrigo Naves me escreveu para contar que o estado de saúde de Dora Paes havia se agravado. Dora, que junto com José Paulo Paes participou ativamente e com entusiasmo dos primeiros planos e passos da Companhia das Letras, teria recebido um péssimo prognóstico: restavam-lhe poucos dias de vida. Em Nova York, em meio a reuniões intensas de trabalho que antecederam as férias, pensava no cafezinho que ela me servia, trinta e três anos atrás, antes de se juntar à conversa, sorrindo com entusiasmo e doçura ao ouvir os planos editoriais que um jovem, ainda magro e de longos cabelos encaracolados, apresentava a seu mentor e ídolo — o poeta, tradutor e grande editor José Paulo Paes.

Foi regado pelo café de Dora, na casa daquele casal de anjos, no Brooklin, que Zé Paulo deu o primeiro pontapé — justo ele, que brincava com as dores terríveis que sentia na perna, a qual acabou tendo de amputar — para que achássemos o nome da editora ainda não fundada.

“A editora devia se chamar Letras & Companhia! Com o & comercial no meio, por favor.” Dessa frase de Zé Paulo nasceu, com uma pequena inversão, a Companhia das Letras, nome que hoje diz mais sobre a minha vida do que meu próprio nome.

Dora sorriu na minha vida inúmeras vezes. Sorriu até do sofrimento, como sorria o Zé Paulo. Nunca a vi não sorrir. Visitei-os e a visitei algumas vezes, e recebi a visita de Dora na editora outras tantas.

Desde o primeiro alerta do meu amigo Rodrigo, acompanhei, graças a seus relatos, a agonia final da vida de Dora. A agonia que ela pouco sentiu, pois foi logo sedada, se expressava em grande parte na tristeza do fantástico filho postiço que Rodrigo foi para os Paes. Ele escrevia todos os dias para um pequeno grupo de amigos, dando notícias cujo sentido maior era o da dor compartilhada, fazendo com que os que conheciam o casal de anjos do Brooklin se juntassem a ele e à família, na antecipação da falta que Dora fará.

Rodrigo avisou que ela não passaria da segunda-feira, dia 20, e eu torcia egoisticamente para que ela aguentasse uns dias a mais. O final da viagem seria de trabalho, em Berlim, dois dias que me custaram não ter me despedido da grande amiga, que aguentou apenas um dia a mais do que o previsto. Pouco antes de sua morte, pedi a Júlia, minha filha, que nos representasse no velório, caso não chegássemos a tempo. Foi aí que soube que Dora todos os anos enviava um presente de Natal para as minhas netas e que a Júlia nem precisava do meu pedido para querer homenagear essa mulher extraordinária.

No mesmo dia que Dora morreu, provavelmente com poucas horas de diferença, morreu outro bom amigo, o Otavinho. Da infecção que o levou, consequência do tratamento contra o câncer, fiquei sabendo poucos dias antes. Havia desligado meu e-mail profissional, e — sem ter lido uma mensagem da Fernanda, esposa do Otavio Frias Filho, datada do dia 16 de agosto, na qual ela me dizia que ele estava internado —, no dia 17, escrevi a ela do meu endereço pessoal, perguntando se ela achava apropriado que eu mandasse uma mensagem ao Otavio, me oferecendo para ler o livro que ele começara a escrever sobre sua relação com o pai. Em Paraty, Fernanda havia me dito que dentro de algum tempo eu deveria procurá-lo. Foi o que quase fiz, sem saber que ele já estava hospitalizado.

Falamos inúmeras vezes desse livro, Otavio e eu, em geral no Rodeio, muito antes de sua doença e depois que ele desistiu de escrever um perfil de Carlos Lacerda — personagem por quem, durante certo tempo, nutriu algum fascínio ou interesse. Talvez inicialmente atraído por uma vida que comportou uma mudança ideológica tão radical, Otavio se enjoou do político carioca, acalentando cada vez mais a vontade de entender seu pai, e talvez a si mesmo, escrevendo outro tipo de livro, completamente diferente.

Nas duas noites que antecederam as duas mortes, não consegui dormir. A insônia me assombrava com tristeza e recordações. Lembrava sem cessar da força que os dois amigos tão diferentes me deram, Dora com seu café e seu sorriso, Otavio com palavras de apreço ao papel da Companhia das Letras no meio cultural brasileiro e com sugestões de como devia me preparar para dias de crescimento, com os quais me desacostumei recentemente.

Otavio não se cansava de elogiar meu atual braço direito na editora, o Matinas Suzuki, vibrando com o fato de compartilharmos o mesmo privilégio — de ter o “japonês” como fiel escudeiro —, primeiro da Folha e depois da Companhia.

Dora e Otavio estavam partindo, e na minha cabeça a dor era uma só. Como eu poderia dormir antevendo um Brasil sem o cara mais sábio da minha geração e sem um anjo que não parava de sorrir?

Não pude me despedir deles. Para o bem e para o mal, nunca vou fazê-lo.

Abaixo, um poema de José Paulo Paes para Dora, distribuído por Andréa Paes Favalli e outros familiares na missa de sétimo dia em homenagem ao anjo do Brooklin.

 

"Canção sensata"

Dora, que importa
O juiz que escreve
Exemplos na areia,
Se livres seguimos,
O rastro dos faunos,
A voz das sereias?

Dora, que importa
A herança do avô
Sob a pedra, nua,
Se do ar colhemos
Moedas de sol,
Guirlandas de lua?

Dora, que importa
Esse frágil muro
Que defende os cautos,
Se além do pequeno
Há horizontes loucos,
De que somos arautos?

De maior beleza
É, pois, nada prever
E à fina incerteza
De amor ou viagem
Abrir nossa porta.
Dora, isso importa.

 

* * * 

Luiz Schwarcz é editor da Companhia das Letras e autor de Linguagem de sinais, entre outros.

Luiz Schwarcz

Luiz Schwarcz é editor da Companhia das Letras e autor de Linguagem de sinais, O ar que me falta, entre outros.

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