O livro no Brasil vive seus dias mais difíceis. Nas últimas semanas, as duas principais cadeias de lojas do país entraram em recuperação judicial, deixando um passivo enorme de pagamentos em suspenso. Mesmo com medidas sérias de gestão, elas podem ter dificuldades consideráveis de solução a médio prazo. O efeito cascata dessa crise é ainda incalculável, mas já assustador. O que acontece por aqui vai na maré contrária do mundo. Ninguém mais precisa salvar os livros de seu apocalipse, como se pensava em passado recente. O livro é a única mídia que resistiu globalmente a um processo de disrupção grave. Mas no Brasil de hoje a história é outra. Muitas cidades brasileiras ficarão sem livrarias e as editoras terão dificuldades de escoar seus livros e de fazer frente a um significativo prejuízo acumulado.
As editoras já vêm diminuindo o número de livros lançados, deixando autores de venda mais lenta fora de seus planos imediatos, demitindo funcionários em todas as áreas. Com a recuperação judicial da Cultura e da Saraiva, dezenas de lojas foram fechadas, centenas de livreiros foram despedidos, e as editoras ficaram sem 40% ou mais dos seus recebimentos— gerando um rombo que oferece riscos graves para o mercado editorial no Brasil.
Na Companhia das Letras sentimos tudo isto na pele, já que as maiores editoras são, naturalmente, as grandes credoras das livrarias, e, nesse sentido, foram muito prejudicadas financeiramente. Mas temos como superar a crise: os sócios dessas editoras têm capacidade financeira pessoal de investir em suas empresas, e muitos de nós não só queremos salvar nossos empreendimentos como somos também idealistas e, mais que tudo, guardamos profundo senso de proteção para com nossos autores e leitores.
Passei por um dos piores momentos da minha vida pessoal e profissional quando, pela primeira vez em 32 anos, tive que demitir seis funcionários que faziam parte da Companhia há tempos e contribuíam com sua energia para o que construímos no nosso dia a dia. A editora que sempre foi capaz de entender as pessoas em sua diversidade, olhar para o melhor em cada um e apostar mais no sentimento de harmonia comum que na mensuração da produtividade individual, teve que medir de maneira diversa seus custos, ou simplesmente cortar despesas. Numa reunião para prestar esclarecimentos sobre aquele triste e inédito acontecimento, uma funcionária me perguntou se as demissões se limitariam àquelas seis. Com sinceridade e a voz embargada, disse que não tinha como garantir.
Sem querer julgar publicamente erros de terceiros, mas disposto a uma honesta autocrítica da categoria em geral, escrevo mais esta carta aberta para pedir que todos nós, editores, livreiros e autores, procuremos soluções criativas e idealistas neste momento. As redes de solidariedade que se formaram, de lado a lado, durante a campanha eleitoral talvez sejam um bom exemplo do que se pode fazer pelo livro hoje. Cartas, zaps, e-mails, posts nas mídias sociais e vídeos, feitos de coração aberto, nos quais a sinceridade prevaleça, buscando apoiar os parceiros do livro, com especial atenção a seus protagonistas mais frágeis, são mais que bem-vindos: são necessários. O que precisamos agora, entre outras coisas, é de cartas de amor aos livros.
Aos que, como eu, têm no afeto aos livros sua razão de viver, peço que espalhem mensagens; que espalhem o desejo de comprar livros neste final de ano, livros dos seus autores preferidos, de novos escritores que queiram descobrir, livros comprados em livrarias que sobrevivem heroicamente à crise, cumprindo com seus compromissos, e também nas livrarias que estão em dificuldades, mas que precisam de nossa ajuda para se reerguer. Divulguem livros com especialíssima atenção ao editor pequeno que precisa da venda imediata para continuar existindo, pensem no editor humanista que defende a diversidade, não só entre raças, gêneros, credos e ideais, mas também a diversidade entre os livros de ambição comercial discreta e os de ambição de venda mais ampla. Todos os tipos de livro precisam sobreviver. Pensem em como será nossa vida sem os livros minoritários, não só no número de exemplares, mas nas causas que defendem, tão importantes quanto os de larga divulgação. Pensem nos editores que, com poucos recursos, continuam neste ramo que exige tanto de nós e que podem não estar conosco em breve. Cada editora e livraria que fechar suas portas fechará múltiplas outras em nossa vida intelectual e afetiva.
Presentear com livros hoje representa não só a valorização de um instrumento fundamental da sociedade para lutar por um mundo mais justo como a sobrevivência de um pequeno editor ou o emprego de um bom funcionário em uma editora de porte maior; representa uma grande ajuda à continuidade de muitas livrarias e um pequeno ato de amor a quem tanto nos deu, desde cedo: o livro.
* * *
Luiz Schwarcz é editor da Companhia das Letras e autor de Linguagem de sinais, entre outros.
* * *
English version
Love letters to books, by Luiz Schwarcz
These are dark days for the book in Brazil. In recent weeks, the two largest bookstore chains in the country filed for a reorganization plan to avoid bankruptcy (the Brazilian equivalent to chapter 11), leaving enormous liabilities in unmet payments. Even with drastic managerial measures, they may still have considerable difficulty finding solutions over the medium term. It remains impossible to predict the full extent of the knock-on effects of this crisis, but they are nonetheless already terrifying. What is happening in Brazil runs counter to the tide seen elsewhere in the world. Contrary to what many thought in the recent past, nobody else is having to rush to save books from imminent doom. The book is the only medium that has weathered, worldwide, a sustained process of serious disruption. Not so in Brazil. Here, many towns are about to be left without a single bookstore, and publishers are now faced with the challenge of getting their books out to readers and have to deal with significant accumulated loss.
Publishing houses in Brazil have already been launching fewer new titles, dropping slow-sellers from their immediate plans, and letting staff go. With Cultura and Saraiva going into receivership, dozens of stores have been closed, hundreds of booksellers laid off and publisher’s revenues slashed by 40% or more, leaving a massive hole that threatens to engulf the publishing market in Brazil.
Companhia das Letras has felt this on its own skin. As the larger publishing houses are naturally the bookstores’ major creditors, they carry the heaviest financial weight. However, we have the means to survive this crisis: the partners of the leading publishers have the personal financial capacity to invest in their companies, and many of us not only want to save our enterprises, but are idealistic at heart, and extremely protective of our authors and readers.
I experienced one of the worst moments of my personal and professional life when, for the first time in 32 years, I had to let go six employees who had been part of Companhia for a long time and had made vital contributions to what we’ve been building day after day. A publishing house that had always been able to understand people in their diversity, see the best in each and base its actions more on a sense of shared harmony than on the crunched numbers of individual productivity, found itself having to manage its expense base, in other words, cut costs. At a meeting held to explain the reasons for that sad and new reality, a collaborator asked me if redundancies would be limited to those six alone. With sincerity and a crack in my voice, I told her that I had no way of guaranteeing that.
Not wanting to judge the errors of others in public, but willing to make some honest self-criticism of the book market in general, I write this open letter to ask one and all—publishers, booksellers and authors— to join together in the search for creative and idealistic solutions. The solidarity networks that formed during the electoral campaign are perhaps a good example of what could be done for the book today. Letters, Whatsapp messages, emails, social media posts and videos, produced with sincerity and an open heart, rallying around fellow bookworld stakeholders, especially its more fragile players, are more than just welcome now: they are indispensable. What we need at this juncture, among other things, are love letters to books.
For those of you who, like me, nurture a love of books as your very reason for being, I ask you to spread this call, urge others to buy books this holiday season; books by your favorite authors, and by new authors you’ve been meaning to explore. Buy them at those bookstores that are heroically riding this crisis out, honoring their commitments, but also at those that have fallen on hard times, and who need our help to muddle through. Most of all, promote books by the smaller publishing houses that need to sell today to continue to exist tomorrow. Think of the humanist publishers that defend diversity, not just of races, genders, creeds and ideals, but also of books with different commercial ambitions, from the modest to the bold. Books of all shapes and sizes need to survive. Spare a thought for how life would be without minority books, and I don’t just mean in terms of print runs, but of the causes they defend. Niche books are as important as any bestseller. Consider those publishers struggling to get by on scant resources, because they may not be there the next time you look for them. Every publishing house and bookstore that closes its doors shuts many more in our intellectual and emotional lives.
Gifting books today is about more than supporting a cornerstone of society in the fight for a more just world, saving a small publishing house or some jobs at one of the larger firms. What it's really about is extending a lifeline to bookstores nationwide and showing a little love for something that has given us so much for so long: the book.