Então é natal. Um Natal bizarro, sem idas a shoppings para comprar presentes e ver o Papai Noel, um Natal sem amigos secretos na empresa, um Natal com o menor número de abraços possível, um Natal em que minha vó pediu que eu não fosse visitá-la nas festas. Mas é natal ainda assim. E há partes de ritual que têm que ser cumpridas — o mais importante deles, é claro, a troca de presentes. Para o bem e para o mal — mesmo que você compre presentes online, mesmo que nem vá participar das festas de família, mesmo que fique sem dinheiro pro IPTU depois —, as pessoas esperam que você dê presentes. Pessoalmente, não concordo. Acho que num ano como esse, o mais importante é planejar um 2021 menos consumista, conseguir comemorar que se chegou ao fim vivo, com saúde, sem se matar (seja com homicídio ou com vírus), com a esperança de que 2021 traga uma vacina e uma espécie de normalidade, sem se prender demais em… pera, você disse livros?
Ah.
É.
Livro é sinônimo de presente.
Faz alguns anos que eu defini que só daria livros de presente ou, se desse alguma coisa, eu daria livros junto. Não só para injetar dinheiro num mercado que amo muito, mas também porque livros são uma forma de afeto. É um presente em forma de experiência, que diz muito sobre como eu vejo aquela pessoa, que ideias acho afins a ela. Mas livros são presentes mais difíceis de se dar. Então, listo aqui alguns livros que você pode dar a diferentes tipos de perfis da sua família. Aliás, são arquétipos aqui. Troque “tio” por “primo” se for o caso. “Prima” por “sogra”. É o Natal das adaptações.
3 - Para seu tio negacionista
Todo mundo tem um tio negacionista. Seja negacionista do Coronavírus, negacionista da terra ser redonda, negacionista da corrupção que aconteceu em todos os governos (sem exceção) desde que o Brasil é Brasil. Um tio que nega o fato de que tem 60 anos e não tem que usar certos tipos de roupas que não ficam adequadas nem num adolescente. Esse tio.
E independente de alinhamento político, o Brasil: uma biografia, de Lilia Moritz Schwarcz e Heloisa Murgel Starling, é uma leitura impecável. Não só é bem escrito, mas se torna um olhar completo e ao mesmo tempo profundo do nosso país. É uma fonte segura e com dados, ao invés de opiniões. É um excelente livro pra quando começar a discussão lá pela quinta garrafa de cerveja e alguém falar alguma bobagem sobre a ditadura militar. “Abre lá seu presente, tio”.
Agora, digamos que seu tio seja tão, mas tão negacionista, que ele negue até palavras. Sugiro então a recém-lançada edição em quadrinhos de Sapiens, de Yuval Noah Harari, com ilustrações de David Vandermeulen e Daniel Casanave. Não é tão sobre o Brasil, mas ensina algumas coisas úteis para enxergamos a humanidade como algo que sim precisa existir em sociedade e em cooperação. O livro também tenta responder as perguntas que faz de uma forma científica, que é mais do que se pode dizer sobre muitos livros que circulam por aí. Claro que ainda vai ter palavras, mas as figuras ajudam na interpretação — muitos negacionistas têm dificuldade com interpretação.
2- Para sua prima favorita
Todo mundo tem uma prima favorita. Aquela prima que recém passou no vestibular em Ciências Sociais, mas não é que nem aqueles vídeos da Tina. Aquela prima que trabalha numa ONG de resgate de gatos de maus tratos. Aquela prima que é vegetariana, mas sempre traz uma salada de maionese espetacular e não fica falando mal da crueldade da indústria do chester durante a ceia. Aquela prima que comenta nas suas fotos no Instagram e não te cobra das promessas de Ano-Novo que você fez no ano anterior. A prima que te empresta a senha da HBOGo e Amazon Prime pra ver aquela série que ela andou recomendando — e isso já faz dois anos e ela nunca mudou a senha. A prima que dá presentes excelentes e mesmo assim com o cupom de troca. Essa prima merece os melhores presentes. Recomendo dois livros que foram lançados esse ano, mas que por ser o ano desse vírus imbecil, acabaram não sendo mencionados como deveriam. A sua prima vai adorar ler um livro excelente e poder esnobar todo mundo que não leu.
O primeiro livro é Garota, mulher, outras, de Bernardine Evaristo. Eu andava tão ansiosa por esse livro que li em inglês, mas Camila Holdefer é uma tradutora espetacular e tenho certeza que trouxe os jogos de linguagem à luz com a graça que eles têm. É um livro contemporâneo, bonito e bem escrito — de temas pertinentes como racismo, homofobia, questões de classe e gênero, mas sem demagogia. O segundo livro é A autobiografia da minha mãe, de Jamaica Kincaid. Jamaica é uma autora excelente, com uma voz cativante e de leitura gostosa. Facilmente foram minhas leituras favoritas do ano e recomendo a qualquer pessoa que me der espaço pra falar.
1- Seu sobrinho que gosta de umas coisas esquisitas
Não estou falando do sobrinho que joga League of Legends ou… sei lá o que os jovens jogam normalmente. Pokémon Go já passou, né? Candy… Crush? Acho que isso já passou também. Enfim. Não é esse. Falo do sobrinho que você já vê que gosta de uns documentários obscuros sobre serial killers. O sobrinho que só usa preto e cujas fotos você precisa guardar pra usar contra eles mais tarde. O sobrinho que conversa sobre ocultismo, não tem TikTok, mas tem um fake no Twitter com 20 mil seguidores. Talvez ele até jogue League of Legends, mas ele também está tentando aprender coreano em segredo porque gosta de BTS. O sobrinho que você quer agradar, mas nem sabe direito como.
Este é mais difícil. Se ele é fã da coisa mais sanguinolenta, vou recomendar meu próprio livro sim: vai de Corpos secos, de Luisa Geisler (euzinha), Samir Machado de Machado, Marcelo Ferroni e Natalia Borges Polesso. É um livro de mortos-vivos que se passa no Brasil. São quatro autores com estilos diferentes — algum vai ter que agradar. Se ele é fã do lado mais social, de questionar as coisas, vou recomendar O avesso da pele, de Jeferson Tenório. Traz racismo, traz temas importantes, mas numa voz que ressoa dentro do leitor. Se ele é fã de uma coisa meio velho-oeste, meio estoica, meio brutamontes, vamos de Meridiano de sangue, de Cormac McCarthy, que recém foi reeditado pela Companhia. É um clássico contemporâneo, mas é acessível e bonito. Se esse livro fosse uma pessoa, seria Clint Eastwood. Clint Eastwood é algo que todos os adolescentes esquisitos ou adoram ou vão adorar.
Lembrando sempre que este post é mais uma ideia lúdica do que uma sugestão verdadeira de aglomeração. É mais uma piada com os tipos de parentes que sempre existem e que tipos de livros poderiam ser do agrado dessa pessoa. O ideal seria mandar o presente pelo correio ou entregar em outro momento. Aglomerações são muito perigosas no período das festas, em especial porque estão todas as pessoas se aglomerando — e se todo mundo se aglomera, vai ficar todo mundo doente no mesmo período e vamos ter menos leitos de UTI quando essas pessoas precisarem de respirador dez dias depois. Então todo cuidado é pouco. E de novo, também é lúdico no sentido de “atrasar o IPTU”: não se endivide pra comprar presente pra parente. Seu parente sempre vai preferir que você esteja menos enrolado financeiramente do que ganhar um livro. Parece óbvio, mas andamos num momento delicado na circulação de ideias.
É um Natal estranho, e todo mundo está passando por sua própria barra. Acima de tudo, todos fiquem bem e se cuidem. Desejo a todas as pessoas um 2021 melhor. Que nós sejamos melhores.
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Luisa Geisler nasceu em 1991 em Canoas, RS. Escritora e tradutora, é também mestre em processo criativo pela National University of Ireland. Pela Alfaguara, publicou Luzes de emergência se acenderão automaticamente (2014), De espaços abandonados (2018) e Enfim, capivaras (2019), além de Corpos secos, romance distópico de terror escrito a oito mãos com Natalia Borges Polesso, Marcelo Ferroni e Samir Machado de Machado. Foi vencedora do Prêmio Sesc de Literatura por duas vezes, além de finalista do Prêmio Machado de Assis, semifinalista do Prêmio Oceanos de Literatura e duas vezes finalista do Jabuti.