Recentemente, em uma tradução, coloquei a palavra “chino” ao invés de “chinês”, e um amigo revisor falou que precisaríamos mudar aquele gauchismo. Não era gauchismo.
Estou há um mês nos Estados Unidos — no Novo México, para ser mais precisa. O fato de ser Novo México faz uma diferença imensa, porque aqui de fato é um Novo México. Já estive nos Estados Unidos e no México: não é nenhum dos dois. É fronteira de algo, é algo novo.
Por estar dentro do departamento de português e espanhol, por estar dando aula de português para falantes de espanhol, não há um único dia em que não fale inglês, espanhol e português. Português para mandar mensagem para o Guilherme e pedir foto dos meus gatos; inglês para dar bom dia à secretaria; espanhol para participar de certas aulas e ajudar meus alunos quando necessário. Minha mente tem existido em uma mescla desses três idiomas. Às vezes, penso uma palavra que é idêntica em português, mas penso com um sotaque do espanhol.
Imagine uma aula: ela dada em português. Ela trata de Brasil. Ela tem alunos falantes de espanhol. Estamos discutindo um texto originalmente em inglês. Imagine um nó.
Talvez o “chino” tenha sido um gauchismo. Talvez o fato de ter família em Bagé, na fronteira do Rio Grande do Sul e Uruguai, tenha aflorado. Talvez todas aquelas pessoas que falam que absorvemos idiomas geneticamente, que temos memórias e impactos de vidas passadas por causa de uma versão da física quântica, tenham razão. Enfim, veio à tona.
Tenho sentido dificuldade de achar os tais gauchismos, expressões que sei que não são do português mais natural. Largando um “que sei eu” — uma versão literal de qué sé yo, muito comum —, um “o ponto” — de the point, cuja tradução mais adequada como “o objetivo”, “o momento”, “a questão central”.
Tenho falado esquisito, é meu ponto. Quer dizer, “é o que quero dizer”.
Tenho sentido medo de que isso atrapalhe minha orelha como autora, eu, que sempre me orgulhei muito de uma certa oralidade. O luzes de emergência se acenderão automaticamente é um livro — aí sim — virado em gauchismo suburbano. Nem com o De espaços abandonados, que já brinca um pouco com o inglês, vi isso acontecer. Talvez o terceiro idioma crie uma desestabilização, um chiado de fundo de confusão.
Sempre usei idiomas estrangeiros para ampliar meu horizonte vocabular, minhas escolhas, mas de maneira consciente. A palavra Quiçá — minha favorita da língua portuguesa e o título de meu primeiro romance —, só a aprendi por causa do espanhol.
Tudo isso para dizer: eu sinto muito. (A gente fala “sinto muito” no português? Sei que é correto, mas se fala? Ou é só desculpa mesmo?) Como eu dizia: foi mal. Não sei que impacto isso terá em minha escrita, minha literatura. Já vinha trabalhando em um projeto que envolvia portunhol que se travou com a pandemia… E agora isso.
A cada palavra que escrevo, cada linha que coloco, vem a dúvida: estou traduzindo isso literalmente de algum idioma? Estou roubando uma expressão que já existe? Pode parecer apenas um detalhe para o leitor comum, uma coisa engraçadinha. Para o autor, é desesperador. É como o machado do lenhador que perde o fio. É o perfumista com o olfato que se confunde. O sommelier com um paladar que começa a mudar. A pessoa autora trabalha com linguagem. Uma mudança nela é um grão de arroz que vira a balança. Sei que a mudança traz medo e perguntas. Uma leve empolgação, mas seguida de medo logo em seguida.
Talvez tudo siga igual. Talvez eu me acostume. Gosto de pensar que sim. Talvez essa mescla de spanglish com portunhol, esse portuspanglish, se abrande. Talvez seja algo que altere para sempre minha maneira de ver qualquer um dos três idiomas. Talvez não. A essa altura, não sei o que é preferível.