Um roqueiro em busca de uma voz

15/02/2017

Por Tony Bellotto

 

A história começa com uma fotografia.

Jimmi Hendrix, usando um chapéu de onde despontam plumas, de olhos fechados, toca sua Fender Stratocaster.

A guitarra é reluzente como uma gemada.

 

 

Estou em 1970, no bairro do Tucuruvi, em São Paulo. O sol da manhã entra pela janela da casa da minha tia Antônia. Eu estou na sala, folheando a revista Manchete. Eu tenho dez anos.

 

Tóinnn!

Um raio me atinge no cocuruto e a eletricidade se espalha até os pododáctilos.

 

Sim, além de dez anos, eu também tenho dez pododáctilos, como você. Não me pergunte porque os dedos das mãos têm apelidos simpáticos como Mata-Piolho, Fura-Bolo, Pai-de-Todos, Seu-Vizinho e Mindinho, como se fossem anões da Branca de Neve, e os dedos dos pés são chamados, na hipótese mais carinhosa e pessoal, de primeiro artelho, segundo artelho e assim por diante até o quinto e derradeiro artelho.

 

Avancemos no tempo.

Agora estou no ano 2.000 (talvez ainda esteja em 1999) na minha casa no Rio. Se ainda não completei quarenta anos, estou perto.

O telefonema da editora Maria Emília Bender me convida a escrever o Livro do guitarrista para a coleção Profissões. A voz de veludo da Maria Emília dispara algum processo desconhecido em meu cérebro.

 

Glóinst!

 

Sim, Glóinst é o som que se produz no cérebro quando se saboreia uma madeleine molhada no chá. Não me pergunte porque a voz de veludo da Maria Emília foi, na verdade, um cavalo de Tróia em cujas vísceras boiavam madeleines molhadas de chá.

 

Uma descarga elétrica se processa entre meus combalidos neurônios de roqueiro no limiar da meia idade.

 

Roqueiros, como se sabe, costumam morrer aos 27 anos (Jimmi Hendrix, Jim Morrison, Janis Joplin, Brian Jones, Kurt Cobain…). Os que conseguem chegar aos 40 – John Lennon chegou, mas parou por aí, Elvis morreu aos 42 e Raul Seixas aos 44 – têm seus neurônios inevitavelmente combalidos. Não me pergunte como estou vivo até hoje.

 

Uma reunião na Companhia das Letras, algum tempo depois, me coloca frente ao escrete que me conduzirá ao Túnel do Tempo (uma pessoa que fala escrete já está, mesmo que não saiba, no Túnel do Tempo): Lilia, Júlia, Pedro, Maria Emília e o Paulo Werneck.

 

A tarefa parece simples: narrar os acontecimentos que me levaram a optar pela profissão de guitarrista de rock.

 

Uau!

Moleza, xácomigo.

 

Naquela época, eu já me considerava um autor consagrado (rá, rá), com dois romances publicados, Bellini e a esfinge e Bellini e o demônio, e com um terceiro, BR 163, em pleno trabalho de parto. Escrever minhas memórias seria, como diria Ernie, o menino prodígio de Oak Park, piece of cake.

 

Bem, não foi tão mole quanto parecia.

Tive esse problema com a voz.

 

Sim, escritores têm voz, embora nunca as ouçamos. A voz de um escritor geralmente é dublada pelo leitor. Então, quando você lê um livro, e repete mentalmente – numa voz muda - aquilo que está lendo para si mesmo, você está ouvindo a voz do escritor. Silêncio. Não me pergunte porque literatos são tão preocupados com suas vozes, já que nunca as têm de usar.

 

Para quem eu quero escrever esse livro do guitarrista, afinal?

Experimento uma crise existencial sentado frente à tela vazia.

Tento imaginar um leitor alvo: um garoto ou uma garota com aspirações de ser guitarrista.

 

Mas o que é um “garoto”? Uma pessoa de 9 anos de idade? 14? 17? 98?

Ouso pensar – e agir – como um bebê, mas aquilo se mostra muito complicado: era uma vez uma vaquinha mumu que vinha pela estrada…

 

Péssimo.

 

Arrisco me comportar como um adolescente, ou mesmo um pré-adolescente: se querem mesmo ouvir o que aconteceu, a primeira coisa que vão querer saber é onde nasci e como passei a porcaria da minha infância...

 

Horrível.

 

Estou perto de me tornar o narrador mais idiota de toda a história da literatura.

 

Resolvo gargarejar.

E ali, através do espelho, encontro meu leitor alvo.

Que não é Alice Lidell, mas eu mesmo.

 

***

Tony Bellotto nasceu em São Paulo, em 1960. Guitarrista e compositor dos Titãs, uma das mais importantes bandas da história do rock brasileiro, estreou na literatura em 1995, com o romance policial Bellini e a esfinge. É também autor de O livro do guitarrista (2001), BR 163 – Duas histórias na estrada (2001), Os insones (2007) e No buraco (2010), entre outros.

Compartilhe:

Veja também

Voltar ao blog