Um louva-a-deus equilibrado no desequilíbrio

11/04/2017

Por Roger Mello

 

A paisagem me empurra pro lado. Quem quer que tenha feito a foto já sabia o quanto era importante o desequilíbrio pra mim, o quanto os espaços eram importantes. Talvez porque quem fez a foto também gostasse do Niemeyer, do Athos Bulcão e do Burle Marx. Eram decifradores de imagens como eu.

Enquanto essa foto era feita, algum parente, algum desconhecido escondia fotos e livros de outro parente, de outro conhecido. Atirava livros no lago de Brasília amarrados com pedras porque aquele livro, aquele, era um livro proibido, e a pedra vai levando logo ele pro fundo. Os livros faziam pessoas desparecerem, pessoas torturadas e mortas, eu escutava. O mundo nunca quis sentido. Nem eu, nem mesmo quando eu era do tamanho da foto. Cabendo entre duas margens.

Mas, apesar de não ter livros, essa é uma foto rodeada de livros. Eles estão principalmente na minha cabeça, como um louva-a-deus que andou pelos meus dedos naquela manhã. Não foi naquela manhã? Não importa, peço um favorzinho a você: veja sempre um louva-a-deus transparente, equilibrado no desequilíbrio, andando de um lado a outro do meu ombro. Se esticando como um pensamento se estica.

As pernas muito tortas não são do inseto, são minhas mesmo, como um Garrincha que deu errado. Foi isso que o médico disse pra minha mãe: “Ele vai ser um novo Garrincha”. Ele não podia estar mais errado, as mãos estavam mais ao meu favor do que as pernas, esqueçam as pernas. As pessoas planejando um país que desse certo. E o futebol e a arte acertando no impossível.

As cores verde e rosa da foto são bem dessa época, nem sei se foram sempre verde e rosa ou se ficaram assim depois. Onde os azuis, amarelos, vermelhos e pretos? Eu aqui no futuro, olhando pra mim mesmo na foto, discordando de mim: essa, sim, é a máquina do tempo.

***

Roger Mello é escritor e ilustrador. Nasceu em Brasília, em 1965. Ganhador do Prêmio Hans Christian Andersen, o Nobel da Literatura Infantil, é autor de obras premiadas como Inês (2015), Contradança (2011), Carvoeirinhos (2009), João por um fio (2006) e Meninos do mangue (2001).

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