Histórias sobre a infância e a adolescência na favela residem os 13 contos de O sol na cabeça, livro de lançamento de Geovani Martins. É desse espaço que o escritor de 26 anos traz as suas narrativas, vividas por ele mesmo ou ouvidas da boca de amigos, familiares e vizinhos. Sua trajetória, no entanto, não se limita a esse espaço: “As pessoas falam da minha vivência e o que tem a ver com o que eu escrevo, e fico pensando que imaginação também é vivência”, pontuou na última segunda-feira (23), quando participou de uma conversa com educadores e bibliotecários do Ibeac, Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário.
Foto: Chico Cerchiaro
A conversa rodeou assuntos como a educação pública e o interesse dos adolescentes pela literatura, questões presentes nos primeiros anos de vida do jovem autor, nascido na favela carioca de Bangu, com passagens pela Rocinha e pela Barreira do Vasco. Da relação conflituosa com o ambiente escolar, o abandono do colégio veio na oitava série. “Foi o momento em que questionei o que estava fazendo ali. Já lia bastante e já estudava do meu jeito, mas não conseguia achar uma função para aquele espaço”, conta. “Não gosto de falar isso, gostaria de falar que estudei para caramba na escola, que era o melhor aluno, mas eu não consegui.”
Diversos empregos seguiram essa decisão: “homem-placa”, atendente de lanchonete, garçom em bufê infantil, funcionário em barraca de praia. As leituras acompanhavam sempre seus dias: Machado de Assis era a sua principal inspiração, entre outros nomes como Graciliano Ramos e Jorge Amado e Mano Brown e Criolo. Participou da Flup, Festa Literária das Periferias, em 2013 e em 2015, escreveu para a revista Setor X, foi convidado duas vezes para a programação alternativa da Flip. Seu livro, publicado em 2018 pela Companhia das Letras, já tem presença garantida em ao menos nove países (Estados Unidos, Reino Unido, Alemanha, Itália, China e outros), além de uma adaptação para o universo do cinema.
O autor diz que suas histórias têm inspração nas leituras literárias e numa atenta escuta das ruas. “Aprendo com os meus amigos, não só pelas histórias deles, mas pela maneira como contam as próprias histórias. Não acho que seja um movimento tão calculado, mas está tudo tão dentro de mim... Apesar de eu sempre ter lido muito, sempre estive muito na rua. A própria vivência não é necessariamente essa história que vou escrever, mas essa mistura de literatura mais clássica com a coisa da rua, dos contadores de histórias da rua, tudo isso foi me formando como escritor.”
Leia a seguir alguns momentos da conversa com Geovani Martins, autor de O sol na cabeça, com educadores e bibliotecários em São Paulo.
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Mediadores de leitura
“O que atrai a leitura em primeiro lugar é a identificação e a descoberta. Quando você descobre uma coisa completamente nova, fica fascinado por ela ou se identifica muito e aquilo te envolve. O mais bacana do mediador de leitura é procurar o livro que traga isso e promover muita conversa. Depois que eu fui participar da Flup, muita gente me indicou muitos livros a partir das conversas que a gente tinha. As pessoas me conheciam e sabiam o que me indicar. A mediação de leitura tem que estar sempre acompanhada da conversa, do conhecimento, de saber alguma coisa sobre a vida da pessoa, sobre a história dela, o que ela gosta de fazer, de ouvir, o que fascina ela, o que move aquela pessoa. Daí o mediador, que conhece livro, vai achar algum que tem a ver com ela. Uma coisa que me assusta bastante é a constância de gente que me fala que o meu livro foi o primeiro que leram. Muita gente me fala isso, é assustador na verdade, mas eu me comovo, porque eu gosto de pensar que pode ser o primeiro de vários outros, como outros autores da Flup que estão publicados, o Jessé [Andarilho], que está na Alfaguara. Se a pessoa lê o meu livro, a partir dali já está muito próxima do livro do Jessé e vice-versa. Isso tem acontecido bastante pela identificação que as pessoas têm sentido, essas primeiras leituras. E isso faz com que a pessoa vá ler mais, que se interesse por outros livros. Acho que o importante do mediador é mostrar pro futuro leitor que existe algum livro que ele vai gostar. Só a Companhia lança mais de 300 livros por ano.”
(In)existência da escola
“Sobre o meu problema com a escola, realmente, não me sentia abraçado naquele espaço, ficava entediado. Quando eu saí de lá, foi o momento em que questionei o que eu estava fazendo ali. Já lia bastante e já estudava do meu jeito, mas eu não conseguia achar uma função para estar naquele espaço. Me falavam: ‘Ah, mas você vai terminar e fazer uma faculdade’. Mas vou fazer faculdade de quê? E para quê? Ninguém tinha uma resposta para isso. Essa ausência de resposta foi se juntando à minha inadequação daquele espaço, e eu fui saindo. Não gosto de falar isso, gostaria de falar que estudei para caramba na escola, que era o melhor aluno, mas eu não consegui. São vários poderes. É claro que o poder público está encabeçando esse problema por não dar as condições necessárias, pelo trâmite burocrático que o professor tem, mas também tem a questão do interesse do professor pelos alunos e do acompanhamento dos pais. Minha mãe, infelizmente, não tinha condição mesmo de acompanhar o meu processo na escola, ela nunca foi a uma reunião, nunca me cobrou um dever de casa. Não tinha nenhuma condição de isso acontecer. Havia a ausência de uma obrigação, de uma cobrança, de uma conversa sobre aquele universo. Eu saía da escola e eu não tinha mais obrigação nenhuma com ela, só no outro dia. No outro dia, eu já tinha até esquecido que a escola existia. Temos que arrumar algum jeito de mediar isso. É o caminho mais fácil de organizar o que temos. A perspectiva do ensino melhorar é muito baixa, nenhuma. O que temos agora e o que podemos fazer com isso? Uma conversa com os professores, despertar esse interesse dos alunos pelo espaço, mostrar que aquele espaço ali é deles, que eles têm que usar aquilo de várias formas. Não usar o conhecimento como uma moeda de troca para sucesso financeiro ou profissional, mas usar o conhecimento para o que ele é, uma coisa que vai te acrescentar como pessoa, como ser humano.”
Masculinidade na infância
“Fui criado por mulheres e vendo mulheres criarem seus filhos, uma coisa inevitável de entrar nos contos. Aí fiz no Roleta Russa um contraponto porque também vi alguns pais que estavam ali. Muito doido isso porque, quando é o pai é um super evento, ‘caraca, é o pai do ano, mó exemplo’, e um milhão de mães fazendo a mesma coisa e é normal. Temos que discutir a masculinidade, como isso afeta a nossa construção na infância e na adolescência, essa cobrança por uma virilidade, sobretudo do homem negro. No mesmo conto que eu falo das crianças, eu faço questão de estar sempre pontuando isso e como isso chega cedo, como isso acaba massacrando a própria sensibilidade do homem na sua construção. No livro, eu tento reproduzir um universo que é esse: de várias mulheres e um cara. Aí sai no livro a prova dessa masculinidade desde muito cedo.”
O politicamente correto nas escolas
“Um moleque do morro, com 10 anos, vai ler esse livro e vai entender. Isso é muito triste, eu não queria que eles tivessem esse acesso, mas é uma realidade. Mas eu ainda sou de querer proteger, de querer que criança vá brincar e vá ler isso com 14. Já no Ensino Médio, você não deixar um aluno ler esse livro por meia dúzia ou um milhão de palavrões ou outras coisas é muita hipocrisia. Eles estão falando, estão sentindo essas coisas. Temos que romper realmente com essa barreira e permitir que eles tenham aceso o que está conversando com eles. A barreira da escola é essa, ela tenta proteger os adolescentes deles mesmos, da linguagem deles, dos palavrões deles, das questões deles. Tem que quebrar essa hipocrisia do pai que não vê o próprio filho e o que o filho está fazendo, está sentindo, quem é aquele adolescente.”
“Imaginação também é vivência”
“As pessoas falam da minha vivência e o que isso tem a ver com o que eu escrevo. Fico pensando que imaginação também é vivência. Imaginamos a partir das experiências que temos. Eu nunca imaginaria o final do Espiral se eu não tivesse passado por algumas coisas. Tem muito isso de imaginação, de vivência, não só minha, mas das pessoas que estão no meu entorno, da minha família, dos meus amigos, dos desconhecidos. Meu trabalho gira muito em comandar essas situações e chegar a algum lugar. Sempre penso qual história eu quero contar, como eu quero contar, e vou descobrindo esses caminhos. Da vivência, o que se aplica no que eu escrevo é a vivência que forma a minha leitura de mundo, é o lugar onde eu olho, observo as coisas e tento escrever da melhor forma possível. Tento ler de tudo, autores do mundo todo e de várias épocas diferentes, clássicos, contemporâneos, pra poder fazer um exercício de entendimento de outras épocas, mas também entender o que está rolando agora, outros autores além do Machado de Assis. Posso falar que me influenciaram bastante o Graciliano Ramos, Jorge Amado, o Mano Brown, o Criolo.”
Conselhos a um jovem leitor/escritor
“Eu aconselho a estudar. Onde é que vai ser, aí cada um que sabe de si. Eu não vou ser o cara que fala ‘sai da escola’, mas também não vou ser o que vai falar ‘fica’. Eu falo: ‘leia’. Pronto. Se vai ser lá dentro, se vai ser lá fora, o escritor tem que ler, tem que estar com isso na cabeça.”
Formação de escritor
“Aprendo muito com os meus amigos, não só as histórias deles, mas a maneira como eles contam as próprias histórias. Meus amigos são contadores de histórias que vão sentar aqui, vão contar uma história em que não aconteceu nada, mas vão prender a atenção de todo mundo, fazer todo mundo rir, ficar com raiva, sentir um monte de coisa. Fico tentando entender como formar essa frase, como criar esse efeito de humor, de suspense, na própria fala da rua. É uma preocupação muito grande. Misturo isso com o que eu tenho de tradição literária, de vários autores canônicos e de vários lugares do mundo. Não acho que seja um movimento tão calculado, mas está tudo tão dentro de mim... Apesar de eu sempre ter lido muito, sempre estive muito na rua. Quando eu era criança, tinha que entrar em casa às 9 horas da noite. Eu podia sair 7 horas da manhã e ficar na rua até as 9 da noite que não tinha problema nenhum, mas, se eu passasse desse horário, ia ter um problema grande. Então eu passava o dia todo na rua e lia de noite. Hoje em dia o meu trabalho está nisso, na rua e na leitura que se misturam. A própria vivência não é necessariamente essa história que eu vou escrever, mas essa mistura de literatura mais clássica com a coisa da rua, dos contadores de histórias da rua, tudo isso com certeza foi me formando como escritor.”
O silêncio
“O silêncio é fundamental no meu processo de trabalho, mas nem sempre eu consigo porque é uma barulheira lá no Vidigal. Durante o dia é moto subindo e descendo, mas a moto é de boa, eu consigo escrever. O problema é de noite, porque junta várias festas diferentes, e às vezes está aquela cantora de sofrência cantando em cima da batida funk de outra festa. Aí não dá, e eu fico buscando esse lugar de silêncio o tempo todo. Já mudei de casa por causa de barulho. Na minha casa tem um meio termo, eu consigo achar alguns momentos para trabalhar, tem outros que não dá e eu vou fazer outra coisa. Ter esse lugar no livro, no ritmo das palavras, é uma coisa que eu pensei bastante para escrever, de estar sempre numa coisa meio musical. Não sei como é nas favelas aqui de São Paulo, mas lá no Rio o silêncio é um privilégio absoluto de aproveitar para falar com Deus. Essa busca é importante. Eu não conheço o silêncio total, mas um silêncio que, para mim, por enquanto, já é suficiente.”
O prazer da leitura
“O prazer da leitura, às vezes, vem depois. O conto da Estação Padre Miguel, por exemplo, super me perturbou para escrever. Não tive paz nenhuma escrevendo aquilo ali, uma situação esquisita, não tive prazer. Tem uma cena de uma usuária de crack que está vendendo o corpo, minha namorada leu e falou: ‘Mas você vai botar isso?’. Eu não queria botar, mas tenho que fazer isso, é o que acontece, é o que estou vendo. A leitura não é só o prazer, mas também o incômodo e digerir isso e tentar lidar com essas coisas.”