Tenham paciência com a leitura

18/06/2019

 

Por Penélope Martins

 

Por onde eu vou, contando histórias ou falando de leitura e mediação, acabo escutando a ladainha: “as crianças não leem” ou “eu não tenho tempo de ler”. Destaco que a palavra ladainha aqui tem um propósito correlato ao sentido religioso: essa prece cantarolada em que alguém diz “as crianças não” e outra pessoa responde “eu não tenho tempo” colocaria a leitura em prova de fé?

 

Ilustração Marcelo Tolentino

 

Certamente cantarolar uma prece não seria de todo ruim, uma vez que muitos de nós, inclusive eu, aprendeu a ler a partir do cantar as canções, do lamento das rezas, das revelações das benzedeiras... Mas a literatura não é composta de única predominância com equipamento sonoro que ecoa por fora e por dentro dos nossos corpos. A literatura propõe movimento e inércia, barulho e silêncio: estado quase fetal das ideias. O quase é por não estarmos sós na leitura de um livro, o que foi visto antes resiste e impregna o que vem depois.

A literatura é a arte de realinhar as palavras. Há uma provocação estética de forma que revela seu conteúdo. E há uma voz narrativa que conversa com a nossa voz narrativa. E essa conversa nem sempre é amigável.  

Talvez a leitura literária seja um rompimento com a construção formal do discurso. Ela ousa ser imagem, transbordar de orquestra, contornar frio do mármore revelando Eros. Todavia, diferentemente das artes plásticas, em que o impacto visual pode acelerar um pensamento reflexivo a partir de sentimentos despertos, ler um livro propõe outro tipo de relação para percorrer o espaço-tempo; trata-se de uma imersão em silêncio constrangedor. A leitura propõe uma quebra, uma ruptura de sociabilização; o livro transforma quem o lê em espécie distinta, algo entre pedra, areia, vento e gente.

Posso falar por mim e só isso é pouco, entretanto, por vezes acordei em praças, parques e aeroportos chorando compulsivamente, rindo descaradamente, assombrada, triste, boba, eu e aquelas personagens que caminhavam comigo até a última página – para a contracapa na surpresa, ao erguer a cabeça e notar os olhos em interjeições de espanto e dúvida, todos ao meu redor, indignados até.

Peço desculpas, senhoras e senhores, se durante a leitura eu me tornei rude ou deselegante, isso não foi intencional. Acontece que o livro acaba me subtraindo do mundo dos vivos para me conduzir por jornadas entre os além-vivos, com motivações variadas, mas isso nem importa, não agora...

A experiência com a leitura requer mais de paciência do que de vocação. Paciência de quem lê, paciência de quem lê quem lê, paciência de quem lê e deseja despertar quem não lê, paciência de quem não lê com o desejo sobre si de quem lê. Paciência com quem leu e não gostou. Paciência com que lê e diz que precisamos ler. Paciência com nossa falta de paciência.

Ou seja, leitor é gente comum que insiste passar linha pelo buraco da agulha até conseguir. Equívoco pensar que a literatura se dá para alguns “eleitos” portadores de certo tipo de dom para ler livros, uma misteriosa qualidade, uma inteligência que os torna capazes de submergir entre as páginas decifrando palavras e revelando suas histórias.

Nas rodas de conversa, leitores exibem seus títulos favoritos e as observações por vezes são extremamente desfavoráveis: “o começo é bem despretensioso”; “comecei duas ou três vezes”; “demora um pouco para começar a história”; “precisei insistir no primeiro capítulo e talvez no segundo”; “comprei pelo tema, mas a forma me desatinou o juízo”; “a estrutura é confusa e emocionante”; “depois da página 30, fui fisgado”.  

Trata-se de paciência. As primeiras vezes pode ser por insistência, teimosia, que se é paciente. As demais, por convicção mesmo. O leitor passa a cultuar essa demora que antecede o mergulho profundo. É como um namorico, depois um beijo e logo são um só, leitor e livro.

A literatura se assemelha ao cultivo de bonsais, mas, ao contrário da imagem de uma tesoura precisa nos ramos verdes, o desafio da poda é ínfimo perto da tarefa contínua de amparar a semente. A leitura requer terra que se fertiliza, água na medida, luz de sol e luz de luar, e muita, muita, paciência para fazer brotar solidez dessa amizade que mescla silêncios longos e breves com conversas intermináveis por dentro da nossa própria cabeça.

Tem outra coisa bem complicada sobre a leitura: a literatura traz muitas revelações indesejadas para quem não se dispõe a desconstruir conceitos mofados, velhas verdades. Em outros momentos, muito pior, a literatura se contrapõe ao que nos identifica, fragiliza nossas memórias com transversais divergências.

O livro, esse amigo que nos afeta na (in)diferença cutucando uma cultura já acomodada dentro da gente, é companhia errante, sedutora, que torna possível aprofundar intersecções preciosas entre universos aparentemente incomunicáveis. Ler um livro nos coloca em perigo. Se assim não fosse, como explicar o apaixonar-se pelo extraordinário Poe, ou a alma curumim entoando o pesadelo, Tutu-Moringa, as repetidas frases de assombramento até a chegada de um bicho que o puxa criança pelo pé? Como poderíamos desdizer do amor perfeito entre o imenso elefante envolto pelos véus da mínima odalisca, e todas as 999 vidas em constante transformação passando por Tristão e Isolda, Otelo e Desdêmona, Romeu e Julieta?

Diante disso, é plausível que muitos dispensem a leitura sob o argumento concreto (e cinza): “não tenho tempo para essas coisas”. De fato, devo admitir que a leitura, assim como a escrita, tem me roubado do tempo dos vivos para que eu me confunda entre além-vivos, isso eu já disse e não tenho pretensão de explicar. Por vezes, eu me submeti ao esquecimento da panela no fogo, o relógio que alardeava um compromisso. No mais, igualmente admito que a vida real é a primeira mentira que a literatura faz questão de atacar. Isso dói muito, e como leitora eu me surpreendo como fico contente sentindo essa dor.

A literatura é essa máquina de moer realidades que não cansa de construir mundos novos. Cada leitura sob uma ótica leitora distinta forma pequenos caquinhos de vidros que convergem em ricas mandalas caleidoscópicas. A cada diálogo sobre esses livros, pessoas repensam relacionamentos, instituições, educação, política...

Acontece que nós estamos vivendo o tempo de aceleração desmedida: impulsos, cortes, fragmentos, uma palavra, milhares de fotografias, vídeos curtíssimos, catástrofes entre memes, gifs, figurinhas, emojis, e-mail (coisa ultrapassada), aquelas mensagens gravadas que ninguém quer ouvir etc.

“Não tenho esse tempo de ler.” Isso é justificável. Sim, as pessoas são acompanhadas pelos seus celulares e os celulares parecem conter pessoas dentro... Já o livro, aquele silêncio no começo, aquela história que eu não sei bem em que ponto vai começar a me interessar...

Felizmente, não é por acaso que a poesia reagiu às redes sociais como o gênero multimídia da literatura. A poesia é orgânica, e poetas são cozinheiros de botecagem – fazem do pouco muito. A poesia vem servida do jeito que o diabo gosta, gordura, açúcar, sal, pimenta: e todos bebem.

Cresceram os números de poetas publicados. A internet é a editora mais generosa de todas. Tem para todo gosto, um temporal de links com amostras de e-books, séries infinita de vídeos, poesia falada, poesia interpretada, poesia em imagens, roda de poesia, gif de poesia etc etc etc. As mais inusitadas formas com os mais variados tipos de conteúdo.  

A diversidade na leitura é o fim daquela ladainha lá da primeira linha, lembra?

A poesia se associa, daí que vem a música, e qual criança resiste explodir gritando palavra cantada? Qual adulto dirá que não ter tempo para os versos de Chico Buarque? E convenhamos, mesmo agora com estranhos que deram para acusar a prosa e a bossa de ideológica, até os mais sisudos param para ver, ouvir e dar passagem ao cantar da banda e suas coisas de amor.

Essa canção, irmã daquela que corre nas bocas das benzedeiras, das rezadeiras do rosário, já se provou aliada dos livros. Só digo uma coisa, paciência, tenha paciência. Eu mesma comecei assim: foi ali uma letrinha brilhante, uma tipografia, depois um verso, a curiosidade da autoria e, quando eu me dei conta, tinha lido o encarte inteiro do LP. Daquilo para avançar nos livros foi paciência, mais nada. E até hoje eu já vivi mais de 999 vidas extraordinárias, desde a caverna, passando por Ítaca, Tróia e com olhos abertos para dentro da imaginação no centro da terra.

 

***

Penélope Martins é advogada, escritora e narradora de histórias, autora de obras como Pinóquio (Panda Books), Minha vida não é cor-de-rosa(Editora do Brasil) e Quintalzinho (editora Bolacha Maria). Como narradora já se apresentou em diversos lugares do Brasil e em Portugal. Mantém um blog para fomentar leitura, o Toda Hora Tem História.

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