Num tempo de engano universal, dizer a verdade é um ato revolucionário.
George Orwell (1903-1950) escreveu essas palavras na década de 1940, quando publicava a primeira edição do livro 1984. Naquela época, ele usou a frase para se referir a um futuro distópico em que a tecnologia criada pelo homem seria usada contra o próprio homem. Um futuro em que o ser humano perderia sua individualidade.
Hoje, mais de 70 anos depois, em um contexto de descredibilização da imprensa, circulação de fake news e vazamento de dados pessoais pela internet, percebemos algumas pistas do quanto a obra de Orwell soa profética. Mais do que nunca, parece ser importante ler e discutir a distopia (ou utopia negativa). Segundo Andreya Susane Seiffert, professora e doutoranda em História Social pela Universidade de São Paulo, ela é definida, "de acordo com Lyman Tower Sargent”, como "'uma sociedade não-existente, descrita com detalhes consideráveis e geralmente situada em um tempo e espaço que o autor pretende que o leitor considere pior do que a sociedade na qual vive'. São lidas como sinais de alerta: 'Olha o que pode acontecer conosco no futuro!'".
Ilustração de Fido Nesti, que adaptou 1984 para os quadrinhos, obra premiada pelo Selo Cátedra Unesco 2020
Resenha do livro 1984: uma crítica ao poder totalitário
Em 1984, último romance da carreira de Orwell, publicado em 1949, meses antes de sua morte, o escritor britânico, aluno do também ficcionista Aldous Huxley (Admirável mundo novo), conta a história de Winston, personagem que tenta se libertar das engrenagens totalitárias do Estado e da vigilância permanente do Grande Irmão. A partir desses elementos e de tantos outros, como a Novafala, língua oficial do partido que renomeia o mundo e, assim, manipula a realidade, o autor explora muito bem a dinâmica do poder pelo poder, sem uma finalidade pressuposta e congruente com o uso da força para se impor.
Para muitos, o livro escancara uma crítica aos governos nazifascitas da Europa, dos quais o mundo ainda tentava processar os crimes desumanos cometidos nos anos anteriores à publicação da obra, final da Segunda Guerra Mundial. Para outros, estrutura uma fantasia que varia do horror ao cômico e se relaciona com o fracasso do comunismo na extinta União Soviética. Dentre as várias interpretações, o reconhecimento do livro como instrumento de reflexão sobre qualquer forma de poder que se posicione como incontestável revela um ponto comum.
Em 2017, quando o republicano Donald Trump completava uma semana na presidência dos Estados Unidos, a Amazon registrou esse clássico de Orwell na liderança de livros mais vendidos no país. A releitura do texto orwelliano, segundo a advogada Maria Carolina de Jesus Ramos, autora do artigo 1984: a obra atemporal de George Orwell, foi impulsionada pela "constatação da fragilidade das democracias e dos direitos individuais".
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Ameaça à democracia: um dos pontos de discussão
Carlos Pessoa Júnior, articulista do Jornal Gazeta do Povo e professor de língua inglesa e espanhola, discorre nesse mesmo sentido quando afirma que a obra "denuncia como um povo pode ser enganado ao ponto de se anular graças a todo um arsenal de mentiras bem construídas, linguagem reducionista e excludente, opressão estatal e manipulação histórica". Talvez até mesmo como forma de autodefesa, as pessoas recorreram e escolheram se armar com o livro no momento em que as liberdades estavam sob foco de ameaça.
Para o educador, a realidade posta em 1984 pode surgir de diversas ideologias. Assim como a Novafala associada a diferentes grupos políticos. E se posiciona: "Qualquer grupo seja de direita ou de esquerda que se isole numa bolha linguístico-ideológica não deseja o diálogo". Sobre isso, Maria Carolina completa: "A novilíngua, a mudança da própria linguagem, é a marca máxima do autoritarismo do Partido retratado na obra. Ao mandar na linguagem, o Governo manda até nos pensamentos de seus cidadãos. É uma sociedade em que nem os pensamentos são livres, pois a linguagem é a base do pensamento".
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Formação dos Estados fascistas: outro ponto de debate
Além dessa questão destacada, outros pontos podem ser discutidos em sala de aula, como "a formação de Estados fascistas e totalitários, as duas guerras mundiais e a invenção da bomba atômica", coloca Andreya. A possibilidade de interpretar o livro a partir de diferentes disciplinas também é uma opção enriquecedora. Andreya escreveu um artigo durante a sua graduação em História, sobre um estágio que realizou com alunos do ensino médio, e analisou as fotos modificadas do governo de Stálin relacionando com o livro 1984. "A história só tem a ganhar ao se reaproximar da literatura. Ambas são formas de pensar a realidade e refletir sobre que futuro queremos construir", explica.
Andreya, enfim, recorre a Ítalo Calvino para justificar a importância do livro 1984:
Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer.
Carlos, então, conclui: "[1984] É uma distopia que nos revela que nem o mais ferrenho sistema opressor pode destruir a busca do indivíduo para proteger sua individualidade, tudo que o torna único [...] De todos os anseios que habitam a alma humana, a liberdade é o maior e de todos os medos o de perdê-la é o que mais assombra, 1984 faz o leitor viver este medo e anseio a cada página".
George Orwell também publicou A Revolução dos bichos, O que é fascismo?, Por que escrevo e Sobre a verdade, entre outros livros publicados pelo Grupo Companhia das Letras
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