A presença de meninas protagonistas não é uma novidade na literatura infantil contemporânea. Se hoje temos Tayó, Pilar, Brunilda e Mortina, antes vieram aquelas que abriram o caminho da representatividade feminina na ficção escrita para o público infantil. Estamos falando de Alice, Emília e Píppi Meialonga, as “avós literárias” dessas meninas feministas que hoje contam suas próprias histórias.
Para começar, vamos retomar a protagonista do livro Sofia, a desastrada, da autora russa Condessa de Segur, que viveu boa parte da vida na França no século 19. O título foi publicado no país em 1858 e traduzido para muitas línguas, inclusive para o português. A menina Sofia é curiosa e muito desafiadora, mas representante de um período em que a literatura infantil era produzida em grande parte para educar e “guiar” o comportamento dos pequenos leitores. Assim, a protagonista é um exemplo claro de como as crianças em geral e as meninas em particular não deveriam agir.
Não é o caso das três personagens que vamos discutir melhor aqui. Representando tempos e espaços muito distintos geográfica e historicamente, as três meninas pertencem a um momento em que a literatura infantil já não se resumia a ser manual de comportamento. Se Alice, Píppi e Emília podem ser vistas como inspiração para meninas é no sentido de ocupar lugares diversos, explorar as realidades que quiserem e usar sua própria voz.
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A menina mais forte do mundo
A mais jovem das três, Píppi Meialonga teve seu primeiro livro publicado na Suécia em 1945, último ano da Segunda Guerra Mundial. Sua autora, Astrid Lindgren, criou a personagem quando, em 1941, sua filha estava doente e pediu à mãe para contar uma história. Algumas das mais divertidas aventuras da menina mais forte do mundo foram adaptadas para o formato dos quadrinhos pela própria Astrid Lindgren, versão que acaba de ser lançada no Brasil pela Companhia das Letrinhas. Píppi Meialonga vai ao circo e outras histórias em quadrinhos foi ilustrado por Ingrid Vang Nyman, a primeira ilustradora da série.
Condecorada com o Hans Christian Andersen, o mais prestigiado prêmio da literatura infantil mundial, Astrid Lindgren trabalhou como jornalista e secretária antes de se tornar autora em tempo integral. Quando engravidou do primeiro filho, recusou o casamento com o pai do menino e se virou como pôde para criá-lo, postura bastante ousada mesmo para a Suécia dos anos 1930.
A autora Janaína Tokitaka, que escreveu e ilustrou o livro ABCDElas, considera que Píppi é muito interessante justamente por prezar sua independência. É uma menina que vai para lugares, que viaja, que conhece coisas. Ela sai desse lugar doméstico, da casa, e é muito anárquica. Ela não é certinha, organizado, e uma coisa que eu gosto muito é ela é meio otimista, mas não é aquele otimismo sacarino, digamos assim, por exemplo, da Anne of Green Gables. Ela é otimista de um jeito meio ‘eu sou órfã, está tudo errado na minha vida, mas tudo bem porque eu posso comer o que eu quero, dormir a hora que eu quero’”.
Para Kátia Canton, pesquisadora, autora e diretora artística do Museu Internacional da Mulher, em Lisboa, Portugal, Píppi é uma menina auto-suficiente. “Provavelmente a autora pensou na possibilidade de uma menina sair dessa dominação patriarcal. Ela é não convencional, ela costura as roupas, faz as comidas, confronta quem tenta levá-la para uma educação forçada e autoritária. É uma menina incrível”. Janaína Tokitaka aponta ainda para o fato de que se gota: “Isso é muito legal. Ela não é perfeita, mas super se aceita e gosta de ser quem ela é. Ela é muito interessante; é viva”, completa Janaína.
Assim, ao mesmo tempo em que a Píppi representa essa criança autônoma e livre dos adultos, superforte e que faz o que quer, pode também ser lida como alegoria da mulher que não aceita o lugar infantilizado de obediência ao marido que é reservado a ela e assume a própria vida. “Em 1940 se tinha ali um contexto de certa forma um pouco melhor para que as mulheres trabalhassem, e a autora trabalhou muito durante a vida, fez carreira, estava sempre trabalhando e ganhando o dela”, completa Janaína.
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Curiosa e outsider
Alice, a mundialmente conhecida protagonista de Alice no País das Maravilhas, apareceu pela primeira vez em 1865, no auge da conservadora Era Vitoriana na Inglaterra. Ao contrário de Sofia e entediada com a leitura de um livro sem imagens, a menina assume uma postura ativa ao perseguir a figura desconcertante de um coelho de paletó e relógio de bolso correndo, atrasado.
Alice ilustrada por John Tenniel
“No caso da Inglaterra vitoriana, não há a menor dúvida de que a Alice é uma outsider, uma exceção. Em uma época mais radical, até os pianos de cauda tinham as pernas cobertas porque inspiravam o pensamento sobre as pernas das mulheres. Era muito repressor, então, a Alice é uma menina um pouco filósofa, que busca pensar a vida, que estabelece relações com personagens surreais, que questiona o tempo, o caminho da vida”, reflete Kátia Canton. “Ela faz uma viagem em que aumenta e diminui de tamanho, entra nos buracos, confronta a Rainha de Copas. Há todo esse pensamento que sai fora de uma linearidade, de uma expectativa de um feminino. Ela é uma personagem outsider.”
Para a autora Janaína Tokitaka, uma das características mais interessante da Alice é o fato de ser movida pela curiosidade. “Ela está sempre experimentando coisas, sempre enfiando a mão ali. Essa curiosidade, essa agência são bem interessantes no contexto superconservador em que a obra foi escrita. É bom lembrar que, nessa época, o parâmetro de mulher adequada era o tal do anjo do lar, como dizia a Virgínia Woolf, ou seja, a mulher que não sai de casa, que recebe na sala de estar, na companhia do marido”, contextualiza Janaína.
Ela considera, no entanto, que Alice é um pouco punida pela sua curiosidade. “Ela vai para o País das Maravilhas, que é um pouco a Inglaterra Vitoriana, e as pessoas estão sempre falando: ‘não, não pode!’, ‘cortem a cabeça dela!’, ‘quem é você?’, ‘você tem que fazer isso, tem que fazer aquilo!’. E ela fica contrariada, o que eu acho bom. Ela poderia obedecer, ficar assustada, ficar com medo, mas ela fica contrariada, de mau humor. Ela não quer aquilo e bate o pé; é uma figura feminina bem forte para a época”, completa Janaína.
E, ainda que esse fator não interfira na personagem literária e no que ela representa, as duas autoras levantam ressalvas quanto à postura do autor no que diz respeito tanto à polêmica de sua proximidade com as meninas quanto à sua visão sobre as mulheres. “Eu não chamaria de uma obra feminista. O Carroll tem uma visão sobre as mulheres que não é das mais ideais, por mais que a gente olhe para ele como um produto de seu tempo. É uma visão um tanto conservadora, um pouco misógina até”, pondera Janaína.
Contraditória e polêmica
Emília, a boneca de pano falante do Sítio do Picapau Amarelo surgiu no contexto brasileiro do início da década de 1920, em que a produção cafeeira ainda era a principal atividade econômica do país e a população, em sua maioria, vivia em ambientes rurais. Para Kátia Canton, a principal contradição no caso da Emília está no fato de Monteiro Lobato, apesar de ser um antimodernista, “um cara de direita”, ter criado “uma personagem extremamente livre, desbocada, mandona. Ousada e audaciosa. Meio louca e, ao mesmo tempo, supersensata”. Ela considera que a Emília representa um feminino livre e extremamente humano, apesar de ser uma boneca.
A mais recente versão da Emília, ilustrada pela artista plástica Lole
Janaína Tokitaka acredita que Emília é vista como uma feminista justamente por por falar o que pensa, mas problematiza essa visão. Como no caso de Lewis Carroll, ela acredita que há questões que precisam ser levadas em conta mesmo com a discussão sobre o tempo em que os livros foram escritos.
“Eu acho espinhoso e tendo a não ver isso como uma coisa muito feminista ou mesmo positiva, porque, quando ela fala dessa maneira atrevida, por exemplo, não é com autoridades. Ela fala para personagens e em situações em que está sendo mais tirânica, digamos assim. E muito claramente essa característica ‘sincerona’ dela é um artifício, um pouco como alter ego do próprio Lobato. E a gente sabe que esse ‘falar o que pensa’ do Lobato, sabendo o que ele fala quando não tem filtro, como a Emília, pode ser muita barbaridade, ter um racismo muito explícito”, argumenta a autora.