Impostos, chefe, boletos: como preparar as crianças para a vida adulta?

12/08/2024

Em um trecho do segundo volume da série Implacáveis– Por que o mundo não é justo (Companhia das Letrinhas, 2024), o escritor e historiador Yuval Noah Harari volta no tempo (cerca de 10 mil anos, para ser um pouco mais preciso) para explicar às crianças como nossa sociedade se tornou o que é hoje.  Com foco em mostrar de onde vieram as desigualdades e por que poucas pessoas têm tanto poder sobre outras tantas.

Perguntas difíceis, com respostas ainda mais complexas - até mesmo para quem já cresceu. Enquanto fala, de forma clara e honesta, com os pequenos sobre tantas questões espinhosas, o autor acaba passando por um tema que deixa os adultos de cabelo em pé:  impostos.

O que é isso? Quem foi o culpado inventor dessa ideia estapafúrdia? "Se você resolver pregar uma peça nos seus pais, puser uma fantasia de monstro e aparecer para eles gritando “Buuuuu!” no meio da noite, é provável que eles caiam na risada. Mas se disser “Mamãe, um homem telefonou procurando você e disse que era fiscal da Receita ou algo do tipo”, cuidado: sua mãe pode ficar terrivelmente assustada!”, alerta o autor, em um trecho do livro. 

“Crianças têm medo de fantasmas e monstros. Adultos têm medo de impostos"  Yuval Noah Harari em Implacáveis  – Por que o mundo não é justo (Companhia das Letrinhas, 2024)

Implacáveis - Por que o mundo não é justo

É difícil encontrar um adulto que discorde.  Impostos, boletos, previdência são assuntos que realmente nos deixam de cabelo em pé. E, em geral, pouco se fala sobre isso com as crianças. Quando os pequenos percebem os adultos preocupados e perguntam o que há, a resposta costuma ser: “Você vai entender quanto crescer”. 

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Quem não queria ter um manual para a vida adulta?

 Será que as crianças só podem entender sobre temas difíceis, mas que são parte da vida prática de todo mundo, quando for tarde demais? Não seria maisfácil se familiar com as dinâmicas e regras da vida adulta antes de, necessariamente, precisar lidar com tantas situações desafiadoras por conta própria? Qual é a vantagem de esperar até dar de cara com um problema com o qual ninguém nos ensinou a lidar antes? Por que não aprender, ainda na escola, o que são juros, como declarar e pagar impostos, ou como funciona o cheque especial (ou por que ele existe, já que quase sempre é uma grande cilada)? Por que não há uma disciplina na escola que ensine, por exemplo, o que fazer se o cano da pia da cozinha estourar e jorrar água por todos os lados? Ou ainda como trocar a resistência do chuveiro elétrico?

Por outro lado, será que saber de tudo isso antecipadamente pode tirar um pouco da leveza infância e adiantar problemas que não deveriam ser preocupações por enquanto? Depende da forma como for feito.

Em um município chamado Bad Camberg, na Alemanha,  há uma escola que conta com uma disciplina chamada “Pronto para a vida”. A matéria é optativa e ensina os alunos a cozinhar, lavar o banheiro, lidar com o dinheiro e com os impostos e até a procurar o primeiro apartamento. Nos Estados Unidos, existe a “Adulting School” (que seria, em tradução livre, uma “escola para virar adulto”). A instituição, localizada em Portland, no estado do Maine, ensina a pagar contas, lidar com relacionamentos e até a dobrar um lençol de elástico. 

Embora a maioria das escolas ainda não invista nesse tipo de conteúdo, algumas promovem atividades que incentivam tanto a colaboração dos alunos com a sociedade como a aquisição de conhecimento para lidar com a própria vida. Para a professora Fernanda Yamamoto, coordenadora de Projetos Educacionais do Senac, em São Paulo (SP), defende que temáticas como cálculo e juros e impostos, tarefas e desafios domésticos e preparação para o trabalho podem, sim, ser abordados na escola, de maneira gradual, considerando a idade e a fase desenvolvimento cognitivo de cada criança. “Os assuntos podem ser trabalhados trazendo situações cotidianas a partir da própria experiência da criança, de forma contextualizada e leve, de maneira que não sobrecarregue, mas sim desperte a curiosidade e o interesse”, diz ela. O ideal é que a missão de preparar essas crianças para a vida, de forma integral, seja dividida entre todos, principalmente envolvendo escola e famílias.

 A importância da parceria entre família e escola

Fernanda aponta que o papel das instituições de ensino é fundamental. “É importante focar no desenvolvimento de competências que vão além do conteúdo acadêmico, como pensamento crítico, trabalho colaborativo, resolução de problemas etc.”, diz ela. “Como exemplo, vale realizar parcerias com a comunidade, com empresas, ONGs e outras instituições para proporcionar experiências como estágios e visitas técnicas, além de promover a participação das famílias no processo educativo, oferecendo workshops e eventos que os ajudem a entender e apoiar o aprendizado dos estudantes”, acrescenta. Ela ressalta ainda a necessidade de a escola incentivar os alunos a desenvolverem os próprios projetos de vida, estimulando reflexões, desde cedo, sobre objetivos pessoais e profissionais, ajudando a traçar planos para alcançá-los.

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Em casa, é importante conversar com as crianças, ensinar e confiar a elas responsabilidades domésticas, de acordo com a idade e com as habilidades. “Abrir um diálogo sobre finanças e sobre escolhas de carreira também é necessário e ajuda a oferecer suporte e apoio emocional para as escolhas e para o desenvolvimento dos pequenos”, aponta a professora. Os pais e cuidadores podem responder as dúvidas, mesmo sobre temas aparentemente complexos, como dinheiro, economia, cartões, juros, investimentos e impostos, de uma forma verdadeira e simples, correlata com o que os filhos conseguem entender a cada faixa etária, em vez de simplesmente desconversar e usar o “quando você for maior, a gente conversa”. 

Como saber se a criança está preparada?

Não há uma resposta exata ou uma fórmula, porque a necessidade, a curiosidade e a capacidade de compreender e exercitar o pensamento sobre as várias questões que envolvem a vida adulta fazem parte de um processo, que é longo e variável. Em alguns casos, dependendo do contexto e da personalidade da criança, as perguntas começam antes; em outros, mais tarde. O principal é não mentir ou ignorar as dúvidas e as demonstrações de interesses e, sempre que possível, estimular a participação, a reflexão e a autonomia. 

“Trazer esses temas por meio de atividades lúdicas, contextualizadas e baseadas em situações reais traz significado ao aprendizado dos estudantes e contribui para a preparação para a vida”, ensina a professora. “É possível utilizar, por exemplo, jogos de tabuleiro, aplicativos educativos e simulações que tragam conceitos financeiros sem que seja de forma pesada ou maçante, promovendo tanto o desenvolvimento cognitivo quanto o socioemocional. Além disso, é importante que o ambiente escolar valorize a alegria e a criatividade, para que as crianças se sintam seguras para explorar, tentar, errar e aprender. Que seja um lugar onde a curiosidade seja incentivada e a pressão por resultados não sobrecarregue os alunos”, acrescenta. 

O que seu filho está pronto para assumir, em cada idade?

De acordo com a faixa etária, as crianças podem ficar responsáveis por algumas tarefas. Isso ajuda a formar um senso de pertencimento e estimula também o aprendizado de atribuições mais complexas, que vão evoluindo com o tempo. Aqui, Fernanda dá alguns exemplos do que os pequenos podem fazer, em cada fase: 

  • 3 anos - Guardar materiais e brinquedos, recolher papeis e limpar áreas de pintura ou desenho. 
  • 4 ou 5 anos - Organizar os materiais escolares, assim como separar livros e papéis, arrumar a própria cama. 
  • 6 a 8 anos – Com noções de cuidado mais acentuadas, podem se responsabilizar por entregas e tarefas escolares, participar do preparo das refeições, pegar e retirar os pratos da mesa. 
  • A partir dos 9 anos – As atividades podem ser trabalhadas de forma mais complexa, uma vez que as crianças já adquiriram mais habilidades motoras, como organizar a mesa e o ambiente escolar, limpar a sala e em casa, o próprio quarto, ajudar no cuidado de crianças mais novas, organizar grupos, aprender sobre meios de pagamentos básicos a partir das principais funções matemáticas etc.

“Nos anos finais do Ensino Fundamental [do sexto ao nono ano], em geral, os alunos começam a desenvolver habilidades de pensamento abstrato e lógico, que são importantes para compreender conceitos financeiros e econômicos mais complexos”, diz a professora. “Respeitando as etapas de aprendizagem, atividades básicas de economia e finanças podem ser trabalhadas, incluindo, por exemplo, noções de economia doméstica e matemática financeira. Feiras de economia, simulações de orçamento familiar e a abordagem de atividades sobre as contas de casa e impostos contidos, simplificações dos juros cobrados pelos bancos, valores de serviços, entre outros, podem ser temas interessantes. Além disso, vale desenvolver projetos interdisciplinares em grupo, trazendo à tona reflexões sobre ação e consequência, planejamento, cálculo de riscos e resultados”, indica. “Os livros podem ajudar tanto na escola quanto em casa em todo o desenvolvimento da criança porque ajudam os estudantes na reflexão sobre os temas abordados”, completa.

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