Mudei de casa muitas vezes. Muitas mesmo. Tudo começou em 1988, quando eu tinha 15 anos de idade e deixei a cidadezinha onde havia morado até então pra estudar o Ensino Médio em Guadalajara. E tudo vai terminar, por enquanto, esta semana, em Barcelona, com a mudança pra um apartamento próprio e, espero, definitivo.
No meio houve o seguinte: nos 11 anos que morei em Guadalajara (1988-1999) mudei 6 vezes de apartamento; nos 4 anos que morei em Xalapa (1999-2003), só 2 vezes; já em Barcelona, nos 8 anos que se passaram entre 2003 e 2011, mudei 4 vezes; em Campinas, nos 3 anos, entre 2011 e 2014, 3 vezes; finalmente, desde 2014 até hoje, de volta a Barcelona, mudei 2 vezes. Mais a mudança desta semana: um total de 18.
Ufa!
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Na semana passada dei uma aula sobre o escritor mexicano Jorge Ibargüengoitia no curso de literatura humorística que estou ministrando numa livraria da cidade. Dias antes, peguei os livros das prateleiras do meu apartamento e levei pro estúdio. Os seis romances, o livro de contos e duas compilações de crônicas. Quando estava revisando o material para preparar a aula, percebi que na contracapa de um dos livros, Los relámpagos de agosto, romance histórico que faz uma paródia da Revolução Mexicana, o preço ainda estava colado. A etiqueta fornecia informação preciosa: eu havia comprado esse exemplar nas livrarias Gandhi de Guadalajara, em 1995. Lembrei de repente daquela livraria, que não existe mais: mudou uns anos depois da avenida Chapultepec pra a López Cotilla, onde continua até hoje. Lembrei também do lugar onde ficava a mesa com os livros de Ibargüengoitia: entrando à esquerda. Essa mesa cheia de capas coloridas, em tons pastel, da pintora inglesa Joy Laville, esposa do Ibargüengoitia, era linda. De fato, foi naquela época que comprei, aos poucos, os livros de Ibargüengoitia nessa livraria e que ele acabou virando, também aos poucos, meu escritor favorito. Até que um dia descobri que eu já tinha lido todos os seus livros. Jorge Ibargüengoitia havia falecido en 1983 num acidente aéreo, com apenas 55 anos. Foi um dos dias mais tristes de minha vida como leitor. Não o dia de sua morte (eu tinha 10 anos e nem sabia da sua existência), senão o dia em que soube que não haveria nada novo pra ler de meu autor favorito.
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Algumas das frases de Ibargüengoitia que sublinhei na semana pasada pra ler na aula:
"Tínhamos nascido um pro outro: juntos, pesávamos cento e sessenta quilos".
"As mulheres que não tive são mais numerosas que as areias do mar".
"Qualquer semelhança com a realidade não é coincidência, é uma vergonha nacional".
"Quem acreditou que tudo era sério é um ingênuo. Quem acreditou que tudo foi brincadeira é um imbecil".
Ibargüengoitia mudou várias vezes de casa, de cidade e de país. Foi de Guanajuato, onde nasceu, pra a Cidade do México, onde morou em várias casas até chegar à "definitiva" (é o tema de alguns contos e crônicas hilários). Ele construiu essa casa num terreno loteado de maneira irregular, o que seria a origem de múltiplos problemas legais. Além do mais, ele a construiu numa época de otimismo bastante irracional e passou os anos seguintes endividado e sob ameaças de despejo.
Tudo mudou quando conheceu Joy Laville em San Miguel Allende, uma cidadezinha colonial muito bonita, favorita dos artistas gringos. Casaram em 1973 e depois decidiram mudar para a Inglaterra. Acabaram em Paris. Segundo Joy Laville, lá Ibargüengoitia era completamente feliz: escrevia pela manhã, tomava o aperitivo com ela (tequila ou, melhor, mezcal), almoçavam, ele tirava uma soneca e à tarde saía para passear. Era a vida perfeita. Num documentário de 2014, a Joy Laville velhinha diz que todo dia, antes de tirar a sonequinha, ele dizia: "eu sou foda".
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Na semana passada, pensei muito no fato desses livros terem me acompanhado por mais de vinte anos nesse percurso absurdo de apartamentos, casas, cidades e países. Lembrei do perigo que passaram em Xalapa, ameaçados pelos fungos e umidade. Daquela caixa enorme onde enfiei toda minha biblioteca de literatura mexicana para levar na casa de meus pais até conseguir levar os livros, aos poucos, nas malas, até Barcelona. Imaginei-os nas caixas que viajaram de barco desde Barcelona até o Brasil. E como voltaram de novo a Barcelona, numa mala entre meias e cuecas, três anos depois. E lembrei também, com dor, porra, daquela namorada que ficou com meu exemplar de Las muertas, o único da coleção que tive que comprar, anos depois, numa edição espanhola, aliás (porra de novo).
Pelas minhas mudanças, muitos livros ficaram no caminho, muitos mesmo. Alguns foram parar nas prateleiras dos amigos. Outros foram pro sebo, pras bibliotecas públicas, pro lixo. Mas os livros de Ibargüengoitia permaneceram. Acho que isso é a posteridade. Acho que isso é o máximo que um escritor pode atingir. A lealdade de um leitor que vai de loja em loja perguntando se eles têm caixas vazias pra te dar e você poder empacotar e levar consigo sua memória literária.
Revisão: Andreia Moroni
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Juan Pablo Villalobos nasceu em Guadalajara, México, e morou alguns anos no Brasil. É autor de Festa no covil, Se vivêssemos em um lugar normal e Te vendo um cachorro, publicados pela Companhia das Letras e traduzidos em quinze países. Ele colabora para o blog com uma coluna mensal.
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