Correio de Barcelona: Você poderia me emprestar cinco mil contos?

23/02/2017

E aí, Zé, tá tudo bem com você e com a Janaína? Desculpa eu não ter respondido antes, é que nos últimos dias eu estava muito ocupado tentando cobrar umas faturas. Cara, que coisa mais absurda esse povo que fica enrolando para não pagar o que prometeu. Lembra que te contei daquele festival super chique numa cidadezinha medieval europeia? Foi ótimo o festival, os debates foram geniais e a gente realmente conseguiu arrumar o futuro das literaturas da Martinica e da Groenlândia. O detalhe é que o festival foi lá pelo mês de setembro do ano passado e o cachê ainda não foi pago, acredita? O pessoal deve achar que escritor é um ser etéreo que não precisa de comida nem tem aluguel pra pagar. Ou que os escritores são todos uns aristocratas que vivem das heranças e que é muito deselegante pagar uma continha de três mil reais.

Eu gostaria mesmo era de fazer de conta que na verdade a grana não importa. Dar uma de escritor boêmio e morto de fome que tira forças da miséria pra escrever. Sempre admirei a determinação sádica daqueles escritores que não se importavam se os filhos iam descalços pela vida ou se a mulher tinha que cozinhar um caldo com os piolhos dos meninos pro jantar (te contei que o Júnior e a Chuchu pegaram piolhos de novo?). Trabalhar? Pagar as contas? Esqueça! Eles não iam deixar de escrever as obras que mudariam a história da literatura para fazer uma coisa tão frívola como ganhar uns contos. Mas eu cresci numa cidadezinha bem católica, Zé, a culpa e o sentido da responsabilidade não me deixam ser um grande escritor. Porra!

Você deve achar, Zé, que estou exagerando, com esse meu talento natural pra hipérbole. Mas juro que é uma coisa muito comum, cara, você não sabe porque mora no céu dos assalariados, de fato isso é a vida de todo frila, não só dos escritores. É tão comum que eu até desenvolvi umas estratégias bem sofisticadas para viabilizar a cobrança. "Viabilizar a cobrança", viu? Eu até entrei no léxico da economia neoliberal, ou seja, da precariedade, que é, vamos concordar, uma maneira complicada de chamar a indigência. É um método terrorista, aceito, mas nesse mundo nosso não dá para ser refinado. O meu método tem cinco etapas e dá para customizar dependendo das características socioculturais do devedor.

Primeira etapa: lançamento programado de e-mail a cada dois minutos a partir de dez contas distintas. Por uma semana. Se não pagar, entramos na:

Segunda etapa: colapsar o WhatsApp do funcionário responsável pelo pagamento com fotos de gatinhos fofos (podem ser também cachorrinhos,
memes do Trump, mulher pelada, fotos de flores com frases da Clarice...). Três dias.

Terceira etapa: leitura pelo telefone da obra de Camões (gravação completa de Os Lusíadas como mensagens de voz). Três dias.

Quarta etapa: reclamações no Twitter com perfis de escritores mortos (Machado de Assis é muito efetivo). Dois dias.

Quinta etapa (quase ninguém chega até aqui): comentários sexuais na página da instituição devedora no Facebook e no perfil pessoal dos funcionários envolvidos.

Pois é, Zé, é isso, daí as pessoas acham que eu estou escrevendo meu novo romance mas o que tô fazendo é baixar fotos de gatinhos pra continuar o assédio. A boa notícia é que o método funciona e eu consegui pagar as contas do mês, ufa! Aliás, tô pensando que seria uma boa criar uma empresa para oferecer os serviços de cobrança com meu método. Já imaginou? Poderia cobrar um 10% da fatura, como os bancos fazem. O que você acha? Eu acredito que teria muita gente interessada. Vamos nessa? Não quer investir nesse negócio? Se me enviar cinco mil reais a gente começa a trabalhar já, já. A grana é pro cartório, para a criação da empresa. Trâmites. A burocracia na Espanha é foda. Não gostou da ideia? Sério?

Então, vem cá, você poderia me emprestar esses cinco mil contos?

Revisão de texto: Andreia Moroni.

* * * * *

Juan Pablo Villalobos nasceu em Guadalajara, México, e morou alguns anos no Brasil. É autor de Festa no covil, Se vivêssemos em um lugar normal e Te vendo um cachorropublicados pela Companhia das Letras e traduzidos em quinze países. Ele colabora para o blog com uma coluna mensal. 
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Juan Pablo Villalobos

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