Trouxe todos os meus preconceitos

26/04/2017

Eu estava de cócoras na seção de literatura russa quando o personagem irrompeu gritando:

– Ninguém se mexe ou vou rebentar todo mundo, pooorraa!

"Todo mundo" eram os clientes da livraria, sete, além de mim e da livreira: muitos para uma quinta-feira de manhã, poucos calculando que no dia seguinte seria o dia dos namorados. Me levantei devagarzinho, com um romance de Dovlátov nas mãos.

– O que você está fazendo, pooorraa!? – o personagem gritou pra mim –, eu falei pra ninguém se mexer, trouxe todos os meus preconceitos e vou rebentar todo mundo, pooorraa!

Olhei pra ele enquanto se aproximava, rodeando a mesa de novidades: empunhava uma ignorância afiadíssima na mão direita e vestia um casaco exageradamente volumoso. Devia ter mais ou menos a minha idade e pensei que minha crise dos quarenta não era nada comparada à do sujeito.

– Que é isso!? – ele me perguntou, apontando com a ignorância pro livro –, uma merda de russo!? Sério!? Você sabe quem é russo!? Putin é russo! Aquele cara é foda!

Ele começou um gesto pra tirar meu livro das mãos, mas o grito angustiado de uma cliente que estava na seção de literatura italiana o interrompeu:

– É um colete de preconceitos! Ele tá com um colete de preconceitos embaixo do casaco! Tem que chamar a polícia!

O personagem virou e se encaminhou com grandes e exaltadas passadas até o lugar onde a moça tremia, abraçada a um calhamaço da Elena Ferrante.

– Puta que pariu! – gritou, brandindo a ignorância dele no ar –, eu acabei de afiá-la, posso te deixar idiota! – ele a ameaçou e logo continuou, assinalando o interior do casaco com a mão livre –, não gostou dos meus preconceitos!? Trouxe todos e vou rebentar vocês se não fizerem o que eu disser!

A livreira finalmente saiu da pasmação que a surpresa tinha lhe produzido. – Sossega, garoto! – gritou.

O personagem olhou pra livreira e desviou de novo sua trajetória, agora rumo ao caixa.

– Garoto!... não me diga garoto que eu fico mais nervoso!

Quando atravessava a seção de literatura em espanhol, parou de repente.

– Puta que pariu!

Enfiou a ignorância no bolso do casaco, abriu a braguilha da calça e urinou profusamente numa seleção de escritores mexicanos, peruanos, argentinos, colombianos, chilenos, cubanos.

– Esses filhos da puta vêm pra roubar os leitores dos autores nacionais, pooorraa!

Instintivamente, todos desviaram o olhar rumo ao caixa, pra evitar contemplar o espetáculo mictório e esperando que a livreira fizesse alguma coisa.

– Qual é seu problema, amigo, posso ajudar você? – perguntou a livreira, que olhava pra entrada esperançosa, mas ninguém aparecia, confirmando as estatísticas de leitura do país.

– Não me diga amigo que a gente não é amigo! – gritou o personagem quando terminou a ejeção. – Qual é meu problema? O que você acha? Se você não entende é porque é mulher, pooorraa! Trouxe todos os meus preconceitos e vou rebentar você, não tenho nada a perder! Tô sem emprego há cinco anos porque uma merda de robô chinês tá fazendo meu serviço na Índia! Vocês, os intelectuais, gostam de rir da gente como eu, vocês ficam com vergonha de como votamos, vocês acham que são superiores por ter lido três livros de uns iluminados que nem sabem onde fica o “i” na palavra democracia, puta que pariu, cansei de vocês!!!

Abriu de uma vez só o zíper do casaco deixando à mostra o colete preso ao peito com fita adesiva cinza. Havia um pouco de tudo: racismo, misoginia, nacionalismo exacerbado e distintos tipos de fobia, desde a xenofobia e a homofobia, a islamofobia e a sinofobia, até as mais específicas coulrofobia (palhaços) e apifobia (abelhas).

– Ninguém se mexe ou vou explodir essa merda de livraria, pooorraa!

Tirou de novo a ignorância do bolso do casaco e, no momento de empunhá-la, percebeu que tinha diminuído um pouco de tamanho.

– Quem pegou minha ignorância, pooorraa!? – perguntou olhando ao redor, procurando o culpado.

Uma cliente sentada numa cadeira pequenina na seção infantil começou a rir, otimista, achando que a livraria ia fazer o milagre de desarmá-lo. A livreira fez uns sinais pra mandá-la calar a boca, porque sabia que o efeito era transitório e limitado: para desarmá-lo totalmente não adiantava que ele entrasse na livraria e olhasse de esguelha os títulos e autores, era necessário fazer o personagem ler pelo menos um pouco.

– Eu quero minha ignorância de volta ou vou rebentar todo mundo, pooorraa! – gritou o personagem tirando o casaco e segurando, na mão direita, o interruptor que ativaria o colete.

– Tem que pegar um livro! – gritou a livreira –, todo mundo! Peguem um livro! Um livro legal!

– Ninguém se mexe, filhos da puta!

O estrondo sacudiu a livraria dois, três, quatro segundos, mas logo tudo voltou à calma. Eu e os clientes nos olhamos, aparentemente ilesos. Só um parecia ter sido afetado. Falou:

– Pelo jeito de falar eu diria que ele não era daqui, acho que ele tinha sotaque do... A livreira o interrompeu, severamente. Saiu de trás do caixa e caminhou até ele.

– Vem cá – ela lhe disse –, vou te recomendar uns livros.

Revisão: Andreia Moroni

* * * * *

Juan Pablo Villalobos nasceu em Guadalajara, México, e morou alguns anos no Brasil. É autor de Festa no covil, Se vivêssemos em um lugar normal e Te vendo um cachorropublicados pela Companhia das Letras e traduzidos em quinze países. Ele colabora para o blog com uma coluna mensal. 
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Juan Pablo Villalobos

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