Acerto de contas

07/11/2017

Capa de Acerto de contas, ilustração de Fido Nesti. 

Há uns anos, Daniel Galera me convidou para participar de uma antologia que seria publicada nos Estados Unidos. A ideia era escrever um conto policial que falasse da realidade social, política e criminal do México. Gostei da ideia (em meus livros, com frequência utilizo os mecanismos do romance policial) e acabei escrevendo “América”, um conto “mal-contado”. Quer dizer: um conto no qual eu pretendia refletir sobre a narrativa da justiça mexicana, totalmente falida, que sempre constrói histórias inverossímeis e absurdas que nem os escritores mais ousados conseguiriam imaginar.

A antologia Acerto de contas foi publicada em inglês nos Estados Unidos, logo em espanhol na América Latina e na Espanha, e recentemente apareceu em português pela Companhia das Letras. Eu a considero uma ótima oportunidade de apresentar alguns dos autores que estão produzindo a literatura mais interessante do panorama hispânico. Não vou falar dos autores brasileiros (Carol Bensimon, Joca Reiners Terron e Bernardo Carvalho) – vocês provavelmente conhecem melhor do que eu. Prefiro me concentrar em quatro autores que são uma boa amostra do que vocês podem encontrar nessa antologia.

Para mim, Jorge Enrique Lage (Havana, Cuba, 1979) é o grande segredo da literatura latino-americana. Lage mora em Havana e a maior parte da obra dele foi publicada só em Cuba, o que complica muito sua divulgação. Ele escreve ficção científica e terror, inspirado pela cultura pop dos Estados Unidos, com resultados insólitos. No livro El color de la sangre diluida estão alguns dos melhores contos escritos em espanhol desde o começo do milênio. Neles, o protagonista pode visitar Stephen King e trazê-lo para participar de um festival literário em Cuba ou brigar contra uma infestação de salamandras saídas de um livro de Karel Capek. Um dos seus romances, La autopista, usando a estética da ficção científica e do non-sense, fabula a construção de uma estrada que conectaria Havana com Miami num futuro pós-comunismo, pós-moderno, pós-apocalíptico, pós-tudo. Sem fugir dos assuntos sociais e políticos, falando deles desde uma perspectiva inusitada, Lage é, além do mais, um dos escritores mais divertidos de sua geração.

Através de três romances (Bonsai, A vida privada das árvores e Formas de voltar para casa) e um livro de contos (Meus documentos), Alejandro Zambra (Santiago, Chile, 1975) está levantando um dos projetos narrativos mais humildes e ambiciosos da literatura hispânica: a miniatura da obra total. Como se fosse um Roberto Bolaño descrido e desenganado, utilizando a figura do escritor e seus dilemas meta-literários, Zambra leva o romantismo boêmio às formas da pós-modernidade: o breve, o elíptico, o fragmentário, o aberto, o inconcluso. Zambra é um escritor para os loucos pela literatura: pessoas que aspiram e expiram literatura e que estão na busca de inspiração.

Com certeza Mariana Enríquez (Buenos Aires, Argentina, 1973) é uma das revelações dos últimos anos: a aparição dos livros de contos Las cosas que perdimos en el fuego e Los peligros de fumar en la cama na Espanha e na América Latina (antes estavam publicados só na Argentina) foi recebida com elogios unânimes da crítica e dos leitores. Enríquez escreve como quem já assimilou o legado do boom latino-americano (em especial Cortázar) e troca os cenários: em vez dos espaços mágicos rurais ou dos espaços charmosos cosmopolitas, ela traz a sordidez e a marginalidade da vida urbana e cria uma Buenos Aires fantasmagórica e aterrorizante. Com influências da literatura americana e da cultura pop, punk e alternativa, Enríquez renova os códigos do gênero fantástico, do terror ou do suspense. A tensão narrativa de seus contos é articulada como uma ameaça: alguma coisa terrível pode acontecer a qualquer momento. O leitor é captado por uma atmosfera asfixiante e hipnótica, como se estivesse no quarto cheio de fumaça dos primeiros cigarros da adolescência, esse espaço e momento em que a vida nos machuca e encanta ao mesmo tempo.

O caso de Mariana Enríquez exemplifica um fenômeno mais amplo: é um fato que a narrativa mais interessante escrita em espanhol está sendo produzida por mulheres. Além de Enríquez, temos as mexicanas Verónica Gerber, Daniela Tarazona, Fernanda Melchor e Valeria Luiselli; as argentinas Vera Giaconi, María Gainza e Samanta Schweblin; a chilena Alejandra Costamagna; a boliviana Liliana Colanzi; a espanhola Ester García Llovet, entre outras.

Santiago Roncagliolo (Lima, Perú, 1975) ganhou o prêmio Alfaguara de romance em 2006 com Abril rojo, um thriller político sobre a violência terrorista do Sendero Luminoso, mesmo tema de seu livro de não-ficção La cuarta espada: la historia de Abigael Guzmán y Sendero Luminoso. Roncagliolo trabalha em seus romances com os mecanismos do thriller e outras formas de narrativa popular, criando enredos que produzem no leitor a “ansiedade da página seguinte”: essa sensação de que você não pode soltar o livro porque tem que descobrir o desfecho da história. Seu último romance, La noche de los alfileres, explora a culpa de um grupo de amigos que cometeram um crime na adolescência. Imaginado como um filme dos anos 80, o romance acaba retratando uma sociedade classista, capaz de justificar a barbárie da violência para salvar a reputação dos que estão chamados a defender, no futuro, os bons costumes.

Ou seja: se você quer acertar as contas com a literatura latino-americana, eis uma ótima oportunidade.

Buen provecho.

Revisão: Andreia Moroni

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Juan Pablo Villalobos nasceu em Guadalajara, México, e morou alguns anos no Brasil. É autor de Festa no covil, Se vivêssemos em um lugar normal e Te vendo um cachorropublicados pela Companhia das Letras e traduzidos em quinze países. Ele colabora para o blog com uma coluna mensal. 
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Juan Pablo Villalobos

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