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Isso de traduzir literatura não acaba de me encantar. Especialmente, claro, literatura boa.
É uma chance sem par de mexer embaixo do capô da prosa mais poderosa, de desmontar o mecanismo de caixinha de música de poemas incríveis. É um privilégio grande de ser lido junto com as pessoas que escreveram aquelas coisas.
Mas outra coisa que me fascina, demais, no processo, é o quanto ele me libera de ser eu mesmo (obrigatoriamente, na verdade) e me obriga a ser coisas as mais diferentes. Eu tantas vezes fico de saco cheio de mim… Do meu ‘estilo’ (será que alguém consegue ler tantos parênteses? E aspas!). Dos meus cacoetes de escrever (e pensar). Será que alguém aguenta ler essas frases separadas por pontos quando devia ser ponto e vírgula?
Das minhas palavras.
(E parágrafo!)
:)
Mas na hora de traduzir você precisa cantar de outro jeito, soar de outra maneira. Como um refinado narrador do século XIX, como um poeta irônico do modernismo, como a personagem de uma comédia teatral do século XVIII, como uma adolescente acamada num romance do século XXI, como todas as dezenas (centenas?) de vozes, estilos, personas e imitações de imitações de estilos que aparecem no Ulysses.
Ser uma versão coerente do narrador de Thomas Pynchon é completamente diferente de ser uma coerente versão do narrador de Ian McEwan. Criar a voz dos diários de Charles Darwin é outríssima coisa do que inventar o som das letras de Bob Dylan.
Às vezes esse processo é custoso.
Recentemente (aguardem, por enquanto é meio segredo) eu traduzi um romance clássico dos anos 1890, e só fui parar de me debater entre possibilidades diversas de tons e registros na hora da revisão final. Traduzi tateando, pra depois dar forma.
Às vezes encaixa como mágica.
Sei que já falei disso aqui, mas continuo pasmado com a facilidade com que o texto de Ali Smith sai dos meus dedos. Parece que ela é o que eu seria se crescesse.
Às vezes deriva de contatos largos.
Passei anos lendo, relendo e literalmente estudando David Foster Wallace antes de afinar a voz de Graça infinita.
Às vezes precisa sair a toque de caixa.
Mas é sempre uma experiência, pra mim, liberadora. Quase uma espécie de terapia mesmo. Deixar de ouvir as minhas vozes e os meus idiomas (a minha cabeça, vai por mim, é uma barulheira sem fim… I hear in my mind/ All of these voices/ I hear in my mind/ All of these words/ I hear in my mind/ All of this music/ And it breaks my heart) e ter que centrar a minha (parca, ok) inteligência verbal a serviço de ser outra(s) pessoa(s). Acho lindo.
Mas não sei se esse tempo traduzindo, sendo outros, sendo trezentos e cincoenta, terá me preparado pra o que há de ser a minha tarefa mais difícil. A minha missão: impossível.
Comecei ainda ontem, tentativamente, a princípio com algum sucesso. Mas ainda aguardo pra ver a repercussão entre um público que também há de ser um dos mais exigentes que eu já enfrentei.
Joyce, Pynchon, Eliot, Smith. Vou precisar de todos vocês e de tudo que vocês já puderam me ensinar. E mesmo assim não sei se dou conta.
Porque daqui até dezembro, eu vou ser a voz do mito. A voz definitiva.
Me chamaram pra ser o Papai Noel do grupo de WhatsApp dos coleguinhas do meu sobrinho Bernardo.
Torçam por mim!
Foto: Shutterstock
Caetano W. Galindo é professor de Linguística Histórica na Universidade Federal do Paraná e doutor em Linguística pela USP. Já traduziu livros de James Joyce, David Foster Wallace e Thomas Pynchon, entre outros. Ele colabora para o Blog da Companhia com uma coluna mensal sobre tradução.
Caetano W. Galindo é professor de Linguística Histórica na Universidade Federal do Paraná e doutor em Linguística pela USP. Já traduziu livros de James Joyce, David Foster Wallace e Thomas Pynchon, entre outros. Ele colabora para o Blog da Companhia com uma coluna mensal sobre tradução.
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