Ricardo da Cunha Lima, voz potente da poesia para crianças, está de volta!

03/06/2022

Se Otto Lara Resende estava certo quando disse que somente as crianças e os poetas têm olhares atentos para o espetáculo do mundo¹, podemos dizer que o escritor paulista Ricardo da Cunha Lima, 56, é um verdadeiro espectador profissional, um virtuose desse fenômeno misterioso que é a vida. Espécie rara de “adulto não praticante”, Ricardo se autodeclara dono de uma mente infantil, no melhor dos sentidos, o de manter viva a urgência de se nutrir dos detalhes, da simplicidade e da beleza.

“A poesia é sobretudo um artesanato literário” - Ricardo da Cunha Lima

Depois de doze anos sem publicar, dedicado à carreira acadêmica como professor e pesquisador da USP, o escritor está De volta, com ilustrações de Rodrigo Fischer. Brincadeiras à parte, não poderia ser outro o título deste livro que marca o retorno do autor ao que ele próprio define como um “lugar de alegria”, a poesia. Não por acaso, veio desse lugar uma obra expressiva que encanta leitores desde os anos 80 – entre eles, De cabeça para baixo (2000), Cambalhota (2003), Do avesso (2006) e BIS (2010). 

No lançamento "De volta", os leitores vão visitar um castelo feito de chantili e dos doces mais deliciosos que existem, conhecer um veloz ventilador que também sente calor e presenciar uma chuva de gotas coloridas.

Ao todo, Ricardo tem oito livros de literatura publicados, todos para o público infantojuvenil. Além desses, o autor publicou também outros livros de teoria: dois livros acadêmicos, pela Editora Humanitas, em que ele é o organizador, e dois livros de tradução, pela editora Nova Alexandria.

 

Filho de bibliotecária e neto de jornalista, Ricardo teve a sorte de crescer em uma casa repleta de livros e experiências culturais. Sua mãe o levava ao trabalho, na tradicional Biblioteca Monteiro Lobato, no centro da capital paulista, e o instigava com aperitivos literários que muitas vezes vinham pelas mãos dos próprios autores. Foi dali que surgiu o gosto não só por ler, mas também por escrever. 

O escritor publicou seu primeiro livro de poemas, Lambe o dedo e vira página, com apenas 18 anos, e de lá para cá nunca se afastou das palavras, tanto como autor quanto como professor e acadêmico.

Confira abaixo a entrevista na íntegra!

O que o levou à poesia infantil, e o que te mantém nessa pesquisa tão apaixonada há tantos anos?

Ricardo da Cunha Lima - Desde criança eu tive acesso a um ambiente ligado à vivência intelectual – meu avô era jornalista e gostava muito de contar histórias, as pessoas em casa gostavam muito de ler. Minha mãe era bibliotecária da Biblioteca Monteiro Lobato, e sempre trazia livros para casa. Foi lá, inclusive, que eu conheci muitos escritores. Então, sempre tive esse lado meu muito cultivado. Com dez, onze anos anos, eu anotava ideias-invenções em um caderno, e foi desse repertório que eu tirei as ideias para meus primeiros projetos. 

Talvez a percepção que eu tive de que poderia aproveitar essas histórias para a literatura infantil foi também graças à minha mãe, porque na biblioteca onde ela trabalhava tinha um mural sobre um concurso literário, mas perdi o prazo. 

Depois, então, eu vi que a FTD ia lançar os primeiros livros de literatura infantil. Sabendo disso, eu levei o livro pra eles, com 18 anos, e foi aprovado. O livro “virou” infantil sem muito propósito, por conta da minha cabeça infantil. Depois do primeiro livro publicado, já passei a pensar em uma carreira na literatura infantil, então os demais livros foram influenciados por essa primeira publicação. Eu tenho muito mais material do que consegui lançar, até por conta desse hiato de doze anos sem lançar, então ainda sinto isso muito vivo em mim, como se eu ainda tivesse que lançar muitos livros para dar conta dessas ideias todas.

 

De lá para cá, foram diversos títulos publicados e inúmeros prêmios dos mais importantes do segmento, como o White Ravens, o Jabuti e o APCA. O que você destaca dessa trajetória? E como você vê a recepção ao gênero poesia para os pequenos leitores nesse período?

Ricardo da Cunha Lima - Algumas datas da minha carreira são muito emblemáticas. Primeiro, o fim de 1984 e início de 1985, quando lancei meu primeiro livro, Lambe o dedo e vira a página: para ler as histórias de um garoto traquinas chamado U e logo em seguida recebi o Prêmio Jabuti, na categoria Jannart Moutinho Ribeiro, de autor revelação de literatura infantojuvenil. Foi um início de muito impacto para mim, ainda no segundo ano da faculdade (eu fazia o curso de cinema, na ECA). Além do prêmio, o livro recebeu boas críticas e vendeu bem.

Esse sucesso além do imaginado gerou muita cobrança por um segundo livro, que só saiu em 1988: Em busca do tesouro de Magritte. Nele, eu inventei uma narrativa para um conjunto de pinturas de René Magritte (que são a ilustração do livro). A acolhida foi ainda mais fantástica, muitos elogios e dois prêmios: o APCA, de revelação de autor juvenil, e o selo “Altamente Recomendável” da FNLIJ.

Aí eu travei, a continuidade da carreira foi difícil, até lancei um terceiro livro, mas fiquei doze anos “no limbo”. Então, vem uma terceira data fundamental, o ano 2000. Eu estava totalmente esquecido pelo mercado, tentando retomar a carreira, ouvindo uma série de negativas, e a Companhia das Letras decidiu apostar num livro de poemas, De cabeça pra baixo. Foi um renascimento na carreira, uma nova oportunidade. O livro fez muito sucesso e ganhou 4 prêmios: o Jabuti, o APCA, o selo da FNLIJ e o White Ravens. A editora continuou apostando em mim e, ao longo de dez anos, lancei mais três livros de poemas.

Então, travei novamente. De novo estou experimentando um renascimento, uma retomada da carreira, depois de doze anos. Então, essas três datas (1985, 2000 e 2022) são os três grandes marcos da minha carreira, três vezes debutante, três vezes começando, três nascimentos.

No mercado editorial, a poesia tem um lugar difícil de ocupar. As editoras ficam desconfiadas, acham que não vende tanto quanto outros gêneros. Mas os pequenos leitores adoram poesia, isso eu percebo muito claramente.

“Até a poesia chegar ao leitor, ela tem que ultrapassar muitas desconfianças.” – Ricardo da Cunha Lima

 

A infância de hoje se relaciona com a palavra de maneira distinta de como era nos anos 80/90? Com a presença dos aplicativos, da realidade virtual e dos games, onde fica a ponte para a poesia? Acho que minha pergunta é: a poesia tem lugar no cotidiano da infância atual?

Ricardo da Cunha Lima - Eu me pergunto até de maneira mais ampla: se o livro ainda tem lugar na vida da criança, para quem um celular é oferecido desde muito cedo. Por outro lado, música também é poesia. Parlendas, rimas. Tudo isso é poesia e está presente no cotidiano da criança. Mas, como movimento, digamos, social, eu acho muito preocupante, porque a escolarização no Brasil não era universal, ela começou a ser expandida nos anos 70/80, e a adoção de livros ficou muito forte ali pelos anos 90. Um movimento que agora está sofrendo o impacto do virtual. 

Pra mim, a poesia tem que ter lugar no cotidiano. A poesia pode também ser o doce, a cereja do bolo, mas não oferecemos a cereja sem oferecer o bolo. Não podemos educar a criança só com o que ela quer. A função do adulto é oferecer à criança um repertório vasto do qual ela se alimente. Deixar ao arbítrio da criança escolher do que ela vai se alimentar – somente os aplicativos, as redes sociais etc – é deseducar, tem que ter um limite. O cinema, o livro, a música, tudo isso tem lugar, precisamos oferecer tudo como um compromisso, de uma forma gostosa.

 

Conta para os leitores como surgiu este novo livro, De volta. O que ele traz que ainda não foi explorado nos seus livros anteriores?

Ricardo da Cunha Lima - Esse livro surgiu um pouco como os outros. São ideias que eu vou anotando e coletando. O que foi diferente nesse processo é que eu parei de ir no caderninho para escrever, por motivos pessoais e também profissionais, fiquei muito envolvido na vida acadêmica. Até que chegou uma hora em que houve uma grande explosão, eu estava sufocando esse lado meu que me dá grande alegria. Então, eu voltei para esse meu caderno de anotações e fiz um total de 30 poemas. Desses primeiros, a editora já fez uma primeira seleção e aí fomos filtrando até chegar nos mais adequados e orgânicos para configurar um livro. Esse livro traz algumas novidades, como esse lado mais emocional. Tem poemas mais reflexivos, sentimentais, inclusive elementos mais tristes. Tem mais personagens crianças envolvidas e também situações infantis. 

 

O que é poesia para você? E, dito isso, o que seria então poesia “para crianças”?

Ricardo da Cunha Lima - Pra mim, é musicalidade, é jogo de palavras, é literatura em estado puro e um convite aos mais variados assuntos. Ela pode ser divertida ou sentimental, mas é sobretudo um artesanato literário, um cuidado com a forma. A poesia para crianças não difere nada disso, pelo contrário, exige um trabalho ainda mais árduo, porque tento levar a poesia “para adultos” ao público infantil. 

“É um exercício de grande acrobacia literária chegar ao melhor formato para as crianças.” – Ricardo da Cunha Lima

 

Você também é professor de latim na USP. Conhecer a raiz da palavra contribui com o seu trabalho como poeta? 

Ricardo da Cunha Lima - Sem dúvida! Ser poeta é trabalhar com a forma e com a linguagem, jogar com as palavras, e conhecer uma língua que está na base do português me ajuda muito, amplia meu conhecimento e meus horizontes, aumenta minhas possibilidades. Mas esse conhecimento não se limita à língua, abrange também a literatura latina (e a literatura clássica em geral).

Esse conhecimento em geral fica nos bastidores, como um repertório particular que posso acionar na composição de um poema. Mas, às vezes, posso trazer esse conhecimento à tona, usá-lo diretamente, deixá-lo à mostra para o leitor (ainda que o leitor não o perceba imediatamente - neste caso, é um subtexto, como um enigma à espera de identificação).

Dois singelos exemplos no livro novo. Quando uso o adjetivo “épicos” na página 9 (épicos desafios, no poema Uma manhã de sol no parque), para mim isso tem um sabor especial, evoca a literatura épica clássica, é uma referência que iguala a criança ao herói da epopeia, aos mitos da Antiguidade.

O poema “A chuva de cores” começa com o verso “Sob a copa dum ipê”, que evoca um verso de Virgílio (sub tegmine fagi, [sob a copa duma faia, às vezes traduzido como sob a sombra de uma faia], expressão que aparece no primeiro verso do primeiro poema bucólico dele). Esse mesmo verso já foi muito imitado na literatura ocidental, por muitos outros poetas. Então, por um lado, estou fazendo um link com todo um patrimônio da literatura clássica, e, por outro lado, brinco e “nacionalizo” o refrão, ao falar que é um ipê. Veja, tudo funciona como um subtexto num poema infantil (de forma desafiadora, é uma segunda camada, um subtexto erudito e adulto num poema infantil).

Mas há outras maneiras ainda mais explícitas de trazer meu conhecimento à tona. Seja como for, tudo isso me ajuda a tecer o poema, como fios que vou bordando e entrelaçando.

 

Como estimular essa relação e esse interesse nas crianças?

Ricardo da Cunha Lima - Não há outro jeito, senão oferecer poesia para a criança, ler para ela, declamar poemas. Mas há duas maneiras de oferecer isso. Uma maneira muito prática é ouvindo música brasileira, pois música é poesia. Essa percepção de que poesia é música existe desde a Antiguidade, e está na própria palavra latina “carmen”, que significa “poema”, e é derivada do verbo “cano” (cantar). 

“Canção é poesia. Se ouvirmos canções brasileiras com as crianças e prestarmos atenção nas (boas) letras, estaremos compartilhando poesia.” - Ricardo da Cunha Lima

A segunda maneira é oferecendo livros de poesia, lendo para elas, deixando-as ler e se encantar com a poesia. Eu mesmo faço essas duas coisas, gosto muito de ouvir MPB e de ler livros de poesia. Finalmente, em defesa da poesia, posso dizer o seguinte: hoje em dia nossa vida é muito corrida, mas poemas são curtos, é muito viável ler um poema todo dia para uma criança, não toma muito tempo e enriquece a alma de pais e filhos.

 

Quais são seus projetos atuais? Está trabalhando em algum livro novo que possa compartilhar com a gente?

Ricardo da Cunha Lima - No momento, estou tentando juntar mais alguns poemas infantis, a fim de formar um novo livro. Mas não vou poder dedicar muito tempo a isso, pois, na atividade de professor da USP, preciso agora preparar uma tese de livre-docência, que é o próximo passo da minha carreira acadêmica. Essa tese envolve a leitura e tradução de poesia latina, mas o resultado ainda vai demorar uns dois anos para sair.

 

¹”Uma criança vê o que o adulto não vê. Tem olhos atentos e limpos para o espetáculo do mundo. O poeta é capaz de ver pela primeira vez o que, de fato, ninguém vê”. A citação de Otto Lara Resende faz parte da crônica "Vista cansada", presente no livro "Bom dia para nascer" (2011), publicado pela Companhia das Letras.

 
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