Em A ausência que seremos, Héctor Abad - um dos maiores escritores colombianos da atualidade - faz um comovente relato sobre a vida e a morte trágica de seu pai, numa prosa literária rica e complexa.
Em A ausência que seremos, Héctor Abad - um dos maiores escritores colombianos da atualidade - faz um comovente relato sobre a vida e a morte trágica de seu pai, numa prosa literária rica e complexa.
A ausência que seremos é, antes de mais nada, a "biografia" escrita pelo filho do médico sanitarista colombiano Héctor Abad Gómez (1921-87), defensor de causas sociais e dos direitos humanos executado pelos esquadrões da morte que golpearam seu país nos anos 1980.
O título do livro provém do primeiro verso do soneto "Epitáfio", atribuído a Jorge Luis Borges, que Héctor Abad filho encontrou no bolso do pai, pouco depois de seu assassinato: "Ya somos el olvido que seremos./ El polvo elemental que nos ignora/ y que fue el rojo Adán, y que es ahora,/ todos los hombres, y que no veremos".
Mas este livro é muito mais que uma biografia. Seu fascínio e graça resultam da própria dificuldade de escrevê-lo, que levou seu autor a arrastar a tarefa por quase vinte anos. Uma tarefa árdua, em primeiro lugar, porque o personagem central é uma pessoa extremamente complexa. Um homem de fortes convicções, que conduziu sua batalha sanitarista com paixão missionária, mas que nunca abraçou nenhum dogmatismo, advogando acima de tudo pela liberdade de pensamento. Sua doutrina máxima era o "mesoísmo" filosófico, termo que ele cunhou para defender o meio-termo e a negociação; almejava a criação de um novo ramo da medicina, a poliatria, voltada não ao tratamento do corpo social, mas intervindo nas causas mais profundas de suas mazelas. Levado por essa crença, entregou-se de corpo e alma à luta em prol dos direitos humanos, denunciando incansavelmente as barbaridades praticadas pelos paramilitares, com a conivência das autoridades. Pacifista convicto, foi vitimado pela própria guerra suja que denunciava.
O desafio de retratar um homem irrepreensível sem resvalar no elogio exagerado é ainda mais árduo quando o retratista é nada menos que o próprio filho. Como o autor declara a certa altura, teria sido fácil para ele fazer uma Carta ao pai às avessas da kafkiana, onde em vez de medo haveria confiança; em vez de poder despótico, o diálogo tolerante. Consciente do risco do louvor excessivo, soube evitá-lo com maestria recriando a realidade em diversos planos, sob diversos olhares. Seu ponto de vista pessoal - como criança encantada pelo pai-herói, adolescente em conflito com o pai-coruja e adulto perplexo aos pés do pai-mártir - completa-se em contraponto com o do próprio protagonista, em trechos dos escritos que legou, somado ao de amigos, colegas e conhecidos, da viúva e das filhas, que emprestam sua voz para oferecer cada qual um ângulo particular. Nesse caleidoscópio coral cabem até os escritos de inimigos e desafetos, como os burocratas acadêmicos que o perseguiram na Universidade de Antioquia e o líder dos paramilitares que articulou sua execução.
Seu texto denso, carregado de dor e violência, traz também poesia e lances de fino humor, comprovando o refinamento da escrita de Héctor Abad.